06/12/2015

O que é o Tratado de Lisboa?

O importante Tratado de Lisboa, assinado em 2007, mexe na relação de poder entre estados e União Europeia, e como todas as decisões que interferem com poderes politicos ou económicos, foi imposto aos portugueses sem qualquer tipo de discussão pública ou sufrágio popular. 

Foi-nos sugerido por um leitor que falassemos do Tratado de Lisboa. Queixava-se da ignorância pública em relação a este tratado. E de facto, percorrendo o google, percebe-se que quase nada foi publicado analisando este tratado.


Encontramos no entanto alguns artigos que merecem ser lidos, em sites como o JanusOnline, SciElo, Escola de Governo ou no Asseri. Poderemos actualizar esta lista a partir de sugestões futuras vossas. Porém existe um artigo de Ilda Figueiredo, que data de 2008, que vimos postado em várias publicações que gostaríamos aqui de disponibilizar na integra :

Razões contra o «Tratado de Lisboa»

por Ilda Figueiredo

Está a decorrer o processo de ratificação do Tratado da União Europeia, assinado em Lisboa a 13 de Dezembro de 2007 pelos Chefes de Estado ou de Governo dos 27 Estados que são membros da União Europeia. Este processo está a ser realizado exclusivamente por via parlamentar, o que terá resultado de um compromisso assumido ainda durante a Presidência da Alemanha, quando foi estabelecido o acordo quanto à retoma da dita constituição europeia, envolvendo também o conteúdo do novo Tratado, o calendário para a sua aprovação e a metodologia a seguir, visando a sua entrada em vigor antes das eleições para o Parlamento Europeu, em Junho de 2009 (1) . Até ao momento, julga-se que só a Irlanda irá recorrer a um referendo por imperativos constitucionais.

A fuga ao referendo

Esta fuga ao referendo, utilizando os mais variados pretextos, revela o receio das consequências do voto dos cidadãos em Portugal e nos outros países da União Europeia. Sabem que o conteúdo do «Tratado de Lisboa» é a cópia da dita constituição europeia, a que mudaram o nome apenas para tentar ludibriar os cidadãos perante aquilo que é uma autêntica fraude política. É que esse projecto de Tratado Constitucional devia ter sido abandonado, tendo em conta os resultados dos referendos na França e na Holanda, em 2005. Basta que um Estado-membro não ratifique um Tratado para que ele não possa entrar em vigor.

Agora, querem evitar a repetição de uma situação idêntica e o possível efeito dominó que teria o referendo em qualquer outro país para além da Irlanda. Receiam sobretudo o Reino Unido, onde o resultado do referendo poderia ser negativo, o que bastaria para impedir a entrada em vigor do novo Tratado da União Europeia.

Em Portugal, a fuga ao referendo sobre o «Tratado de Lisboa», além de ser mais uma promessa não cumprida do PS, no que foi acompanhado pelo PSD, não teve em conta a última revisão constitucional, a qual foi expressamente realizada para ser possível o referendo ao Tratado, que na época se chamava Tratado Constitucional e agora querem que seja «Tratado de Lisboa», mas onde se pode constatar que, com excepção do nome e dos símbolos, as diferenças são mínimas. Mas até sobre isso há uma Declaração anexa ao Tratado com vários países a declararem que vão continuar a utilizar esses símbolos, entre os quais se encontra Portugal.

O aprofundamento do neoliberalismo

Este novo Tratado não devolve soberania aos Estados-membros e não inverte o processo de aproximação da União Europeia a um modelo neoliberal de capitalismo. Pelo contrário. Afecta a soberania do país em pontos centrais, aprofunda o centralismo das decisões em torno dos seis maiores países (Alemanha, França, Itália, Reino Unido, Polónia e Espanha), aprofunda o neoliberalismo e reduz ao mínimo os direitos sociais, dando resposta às reivindicações do capital europeu.

Este Tratado mantém todos os aspectos negativos das políticas neoliberais que já conhecemos, e agrava-as, dando-lhes uma visão ainda mais liberal, com os protocolos que são parte integrante do próprio Tratado, seja sobre a política de concorrência que «não deve ser falseada», expressão que também constava da dita constituição europeia, seja sobre os chamados Serviços de Interesse Económico Geral. A leitura conjunta destes artigos só pode ter uma interpretação: sujeitar a maioria dos serviços públicos à política de concorrência e ao mercado interno, ou seja, facilitar a vida aos grupos privados que querem apropriar-se da generalidade dos serviços públicos, aprofundando o que está a acontecer com as liberalizações nos transportes, correios, energia, telecomunicações, serviços financeiros, etc.

Aí aparecem também, a propósito do Artigo 104.º do Tratado, relativo ao funcionamento da União Europeia, as declarações da Conferência Intergovernamental sobre a Estratégia de Lisboa e o Pacto de Estabilidade, insistindo nas políticas que estão a ser praticadas, com as consequências conhecidas. Sabemos o que significa controlo do défice orçamental: corte nos salários reais e nas pensões e reformas, menores investimentos públicos, incluindo na saúde e educação públicas, mais liberalizações/privatizações, com maiores ganhos para grupos económicos privados, e as graves consequências visíveis no desemprego, o qual alimenta o trabalho precário e os baixos salários.

Igualmente, a propósito da política monetária, não só se mantêm os poderes conferidos ao Banco Central Europeu, como se admite que se possa ir mais longe, «conferindo-lhe atribuições específicas no que diz respeito às políticas relativas à supervisão prudencial das instituições de crédito e outras instituições financeiras, com excepção das empresas de seguros». (2)

O ataque aos direitos dos trabalhadores

O reforço dos caminhos cada vez mais neoliberais da União Europeia está intimamente associado ao ataque aos direitos laborais. Aliás, a Estratégia de Lisboa defende também a flexibilidade laboral, de que já conhecemos a flexigurança à portuguesa (Livro Branco sobre o direito do trabalho, as alterações ao Código de Trabalho, alterações do estatuto dos trabalhadores da função pública, dos professores, etc.). Estão em causa, designadamente, a contratação colectiva, a proibição de despedimentos sem justa causa, a segurança do vínculo laboral, a participação democrática, os salários e os horários de trabalho.

Nesta fase, importa recordar que toda a luta contra a famigerada directiva Bolkestein se fez durante a tentativa de ratificação do Tratado Constitucional e isso contribuiu para uma maior compreensão dos cidadãos franceses do que pretendiam com o tal tratado, e que resultou na sua recusa no referendo de 2005, na França.

A verdade é que, mesmo com os recuos a que foram obrigados, a directiva de liberalização dos serviços acabou por ser aprovada e, recentemente, o Tribunal de Justiça Europeu, em nome da liberdade de estabelecimento, adoptou decisões contra sindicatos da Suécia e da Finlândia, nos célebres casos das empresas Laval/Vaxholm e Viking Line, que remontam a 2004. Recorde-se que o caso Laval, uma empresa da Letónia encarregada da construção de uma escola na cidade de Vaxholm, na Suécia, recusou-se a aplicar uma convenção colectiva aplicada neste país.

Desta forma, para quem tivesse dúvidas do que se pretende com a liberalização dos serviços, através da directiva Bolkestein e outras propostas legislativas que se anunciam, estas decisões da instância superior de justiça comunitária clarificam que o seu objectivo central é defender a todo o custo a liberdade das empresas sobrepondo-a à liberdade dos trabalhadores se organizarem, defenderem os salários e outros direitos conquistados.

Em Dezembro de 2007, com o projecto de Tratado da União Europeia, assinado em 13 de Dezembro em Lisboa, o Tribunal de Justiça Europeu já não teve dúvidas. E decidiu contra os sindicatos e os trabalhadores suecos, sobrepondo a liberdade de estabelecimentos das empresas estrangeiras à liberdade dos trabalhadores e dos seus sindicatos lutarem pelos seus direitos, designadamente salariais.

É que o «Tratado de Lisboa», seguindo o derrotado Tratado Constitucional, afirma, no protocolo relativo ao mercado interno e à concorrência, que «o mercado interno, tal como estabelecido no artigo 2.º do Tratado da União Europeia, inclui um sistema que assegura que a concorrência não seja falseada». Assim, pode-se ver que a interpretação da directiva sobre o mercado interno dos serviços que os magistrados do Tribunal de Justiça Europeu fazem é a que dá todo o poder aos grupos económicos, considerando que os trabalhadores destacados de empresas estrangeiras apenas podem ficar vinculados aos mínimos legais e não aos acordos colectivos do sector e do país para onde vão trabalhar. Na prática, colocam os trabalhadores dos diferentes países da União Europeia em concorrência entre si, contribuindo para a diminuição dos salários e outros direitos laborais.

Esta decisão inadmissível assume particular gravidade no actual contexto do «Tratado de Lisboa», que aprofunda a aplicação de mínimos legais inscritos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Carta esta que é uma grave restrição de direitos quando comparada com a Constituição da República Portuguesa e até a própria Carta Social Europeia do Conselho da Europa.

O fim da igualdade entre Estados

O que restava do princípio da igualdade de direitos entre Estados soberanos que faziam parte da União Europeia é agora completamente desmantelado, como se pode ver nas alterações da organização do poder da União Europeia, na criação da sua personalidade jurídica e na forma como serão tomadas as decisões, seja no Conselho, seja no Parlamento Europeu. Há quem considere que querem transformar o nosso País numa mera região administrativa da Europa, como João Ferreira do Amaral, que considera não haver qualquer argumento válido de coerência ou eficiência para justificar a redução de Comissários, a alteração do método de decisão ou o fim das presidências rotativas. Afirma que «existe sim é a vontade dos grandes países de anularem o poder dos pequenos ou médios» (3) .

Na verdade, a inscrição de um novo artigo que dá à União Europeia personalidade jurídica, tal como pretendia a dita constituição europeia, lança as bases para a criação de um super-Estado, de que são indícios a criação do Presidente do Conselho Europeu, pondo fim às presidências rotativas, o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, a quem se atribui a condução da política externa e de segurança comum da União, o fim de pelo menos um Comissário por país na Comissão Europeia, a que se junta a passagem de dezenas de decisões, até agora tomadas por unanimidade, para uma simples maioria qualificada (55% dos Estados e 65% da população), o que dá aos grandes países um papel determinante.

É a afirmação do directório das grandes potências, que, aliás, já assumem esse papel sem que se torne um escândalo comunitário, como aconteceu recentemente, a propósito da crise financeira americana, com a reunião dos líderes da Alemanha, França, Reino Unido e Itália, a que se juntou o Presidente da Comissão Europeia, mas só depois de este o reivindicar.

Por isso, na prática, Portugal já pouco conta e os líderes governamentais portugueses também não se incomodam com isso. Mas, no futuro, tenderá a ser pior, com o menor peso no Conselho, onde a regra da votação é a maioria, alargando a co-decisão com o Parlamento Europeu (onde seis potências terão a maioria dos deputados e Portugal perderá dois), perdendo-se também o direito a um Comissário permanente.

Para Portugal, esta situação é particularmente grave, tendo em conta a revisão constitucional de 2004, onde, numa atitude de inadmissível e vergonhoso demissionismo, os deputados do PS, do PSD e do CDS/PP admitiram que as normas comunitárias prevalecem sobre qualquer direito interno português.

Mais centralismo, menos soberania e menos democracia

Seguindo a par e passo o que propunha a dita constituição europeia, o «Tratado de Lisboa» dá à União Europeia competência exclusiva em várias domínios, que inclui o estabelecimento das regras de concorrência necessárias ao funcionamento do mercado interno e a conservação dos recursos biológicos do mar no âmbito da política comum de pescas, além, claro está, da política comercial comum, da União Aduaneira, da política monetária para os Estados-membros cuja moeda seja o euro (4) , de acordos internacionais, abrindo caminho a cooperações reforçadas, designadamente nas áreas da segurança e política externa.

Prevê também competências partilhadas em áreas que afectam o quotidiano das pessoas, designadamente: mercado interno, política social, coesão, agricultura e pescas, ambiente, defesa dos consumidores, transportes, energia, espaço de liberdade, segurança e justiça, etc. Estas competências partilhadas estão subordinadas às orientações da política de concorrência, como se prevê no protocolo onde se afirma que «o mercado interno inclui um sistema que assegura que a concorrência não seja falseada», o que visa dificultar a defesa dos serviços públicos, das micro e pequenas e médias empresas, da economia social e dos trabalhadores.

O empobrecimento da democracia também é visível na inclusão de uma restrita Carta dos Direitos Fundamentais, sujeitando-a a uma leitura ainda mais restrita através de anotações diversas, tendo por base as que constavam do relatório de Giscard D’Estaing sobre os trabalhos da Convenção que aprovou a dita constituição europeia. São direitos que ficam a quilómetros de distância da Constituição da República Portuguesa e, mesmo, da Carta Europeia dos Direitos Sociais, aprovada pelo Conselho da Europa.

De igual forma, o papel dos Parlamentos nacionais, embora seja referido no texto do Tratado, essa referência acontece num quadro de menor capacidade de defesa dos interesses portugueses, por haver mais competências nos órgãos da União Europeia. Até Mota Amaral, antigo Presidente da Assembleia da República, reconhece que «os Parlamentos nacionais não alcançam no «Tratado de Lisboa» todo o reconhecimento que lhes seria devido como instituições de pleno direito da União». (5)

O que o «Tratado de Lisboa» faz é reforçar poderes da Comissão e do Parlamento Europeu à custa dos Parlamentos Nacionais, que ficam remetidos para a fiscalização prévia do princípio da subsidiariedade no processo de elaboração das normas europeias. Com este Tratado da União Europeia tenderão a caminhar para meros Parlamentos Regionais Portanto, com este Tratado da União Europeia tenderão a caminhar para meros Parlamentos Regionais.

No nosso caso da Assembleia da República esta perde poder de decisão própria em áreas fundamentais, aumentando apenas a sua intervenção como órgão consultivo, mas sem direito de veto das decisões comunitárias de que discorde. Só em casos muito hipotéticos e excepcionais, e sempre em conjunto com outros Parlamentos Nacionais, é que poderá criar alguma dificuldade à Comissão Europeia, atrasando o processo legislativo.

Mais militarismo e menos autonomia

A criação dos novos cargos (Presidente do Conselho e Alto Representante da União para os negócios estrangeiros e política de segurança), que reduz a visibilidade e rebaixa o estatuto internacional dos pequenos e médios países em relação ao exterior da União, é acompanhada de novos artigos sobre política comum de segurança e de defesa.

Aí se prevê, designadamente, que os Estados-membros coloquem à disposição da União capacidades civis e militares de modo a contribuir para os objectivos definidos pelo Conselho, comprometendo-se a melhorar progressivamente as suas capacidades militares, cabendo à Agência Europeia de Defesa identificar as necessidades operacionais, promover as medidas necessárias para as satisfazer, contribuir para identificar e, se necessário, executar todas as medidas úteis para reforçar a base industrial e tecnológica do sector da defesa, acrescentando que os compromissos e a cooperação neste domínio respeitam os compromissos assumidos no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).

Outro rumo para Portugal e para a Europa

Como reafirmamos na importante Conferência Nacional do PCP sobre Questões Económicas e Sociais, e como demonstrámos no Encontro Nacional dos 20 anos de adesão à União Europeia, é possível uma outra Europa baseada no princípio de Estados soberanos e iguais em direitos, onde o direito à produção seja uma questão central, apostada na paz, no desenvolvimento e progresso social, na cooperação com os povos de todo o mundo.

Para isso, impõe-se uma ruptura com as políticas previstas no Tratado Europeu, incluindo as políticas neoliberais, o fim da União Económica e Monetária e dos seus rígidos critérios, incluindo o Pacto de Estabilidade e a Estratégia de Lisboa, e exige-se o aprofundamento da democracia participativa, de que o referendo ao Tratado é uma questão essencial, mas que também implica emprego com direitos e democracia nos locais de trabalho, a defesa da produção nacional e dos micro, pequenos e médios empresários, a valorização de quem trabalha e a garantia de acesso universal a serviços públicos de qualidade.

Notas

(1) As primeiras ratificações decorreram nos parlamentos nacionais da Hungria, Malta, Eslovénia, Roménia e França.

(2) Artigo 105.º do «Tratado de Lisboa».

(3) Ver Seara Nova, n.º 1702, 2007.

(4) Actualmente 15 dos 27 que compõem a União.

(5) Ver artigo do Expresso, 2/02/2008.