Nos últimos anos na Europa e nos Estados Unidos o horário de
trabalho tem vindo a aumentar.
Em Portugal a jornada de trabalho para a
Função Pública amentou das 35 para as 40 horas perante a passividade
quase total dos sindicatos oficiais. Em Espanha, a CNT e a CGT
reivindicam há muito as 30 horas semanais.
Há pouco mais de 80 anos os
economistas acreditavam que na viragem do século XX para o XXI, devido
aos progressos tecnológicos (que continuam a verificar-se) o tempo de
trabalho diário não ultrapassaria as 3 ou as 4 horas. O antropólogo
anarquista e membro do Occupy Wall Street, David Graeber, explica a
inutilidade dos empregos (e dos trabalhos) de merda criados nas últimas
décadas. Que só servem para nos prender aos locais de trabalho, não para
produzir ou fazer quaisquer trabalhos socialmente relevantes.
Sobre o Fenómeno dos Empregos de Merda
por David Graeber
No ano de 1930 John Maynard Keynes previu
que, até ao final do século XX, a tecnologia teria avançado o
suficiente para que países como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos
pudessem implementar a semana laboral de 15 horas. Não faltam motivos
para acreditar que tinha razão, dado que a nossa tecnologia actual o
permitiria. E, no entanto, isso não aconteceu. Em vez disso, a
tecnologia inventou novas formas para que trabalhemos mais. A fim de
alcançar este objectivo, foram criados novos trabalhos, que não têm,
efectivamente, nenhum sentido. Enormes quantidades de pessoas,
especialmente na Europa e nos Estados Unidos, passam toda a sua vida
profissional na execução de tarefas que, no fundo, consideram
completamente desnecessárias. É uma situação que provoca um dano moral e
espiritual profundo. É uma cicatriz que marca a nossa alma colectiva.
Mas quase ninguém fala disso.
Por que é que nunca se materializou a
utopia prometida por Keynes – uma utopia ainda aguardada com grande
expectativa nos anos 60? A explicação mais generalizada hoje em dia é
que Keynes não soube prever o aumento massivo do Consumismo. Face à
alternativa entre menos horas de trabalho ou mais brinquedos e prazeres,
teríamos escolhido colectivamente a segunda opção. É uma fábula muito
bonita, mas basta apenas um momento de reflexão para vermos que isso não
pode ser realmente verdade. De facto temos assistido à criação de uma
variedade infinita de novos empregos e indústrias, desde a década de 20,
mas muito poucos têm alguma coisa a ver com a produção e distribuição
de sushi, iPhones ou de calçado desportivo de moda.
Então, quais são, precisamente, esses
novos postos de trabalho?
Um relatório comparando o emprego nos EUA
entre 1910 e 2000, dá-nos uma imagem muito clara (que, sublinho se vê
praticamente reflectida no Reino Unido). Ao longo do século passado,
diminuiu drasticamente o número de trabalhadores empregados no serviço
doméstico, na indústria e no sector agrícola. Ao mesmo tempo, “a nível
profissional, os directores, os administrativos, os vendedores e os
trabalhadores dos serviços” triplicaram, crescendo de um quarto a
três quartos do emprego total. Por outras palavras, os empregos no
sector produtivo, tal como previsto, muitos trabalhos produtivos
automatizaram-se (ainda que se conte a totalidade dos trabalhadores da
indústria a nível mundial, incluindo a grande massa de trabalhadores
explorados da Índia e da China, estes trabalhadores já não representam
uma percentagem da população mundial tão elevada como era habitual).
Mas ao contrário de possibilitar uma
redução massiva do horário laboral de maneira a que todas as pessoas
tenham tempo livre para se ocuparem dos seus próprios projectos,
prazeres, visões e ideias, temos visto um aumento do tempo de trabalho
tanto no “sector de serviços” como no administrativo. Isto inclui a
criação de novas indústrias, como os serviços financeiros ou de
telemarketing e a expansão de sectores como o direito empresarial, a
gestão do ensino e da saúde, os recursos humanos e as relações públicas.
E estes números nem sequer reflectem todas as pessoas cujo trabalho é
fornecer serviços administrativos, técnicos, ou de segurança para essas
indústrias, para não mencionar toda uma gama de sectores secundários
(tratadores de cães, entregadores de pizza 24 horas) que devem a sua
existência ao facto do resto da população passar tanto tempo a trabalhar
noutros sectores.
Estes são os trabalhos a que proponho chamar de “empregos de merda.”
É como se alguém estivesse a inventar
trabalhos apenas para nos terem ocupados. É aqui, precisamente, que
reside o mistério. E isso é exactamente o que não devia acontecer no
capitalismo. Claro que, nos antigos e ineficientes estados socialistas
como a União Soviética, onde o emprego era considerado tanto um direito
como uma obrigação sagrada, o sistema criava todos os empregos que
fizessem falta, (era este o motivo que levava a que nas lojas soviéticas
fossem “precisos” três empregados para vender um só bife). Mas, é
claro, este é o tipo de problema que é suposto ser corrigido com a
concorrência dos mercados. De acordo com a teoria económica dominante,
desperdiçar dinheiro em postos de trabalho desnecessários é o que menos
interessa a uma companhia que queira ter lucro. Mas ainda assim, e sem
se perceber muito bem porquê, é isso que acontece.
Ainda que muitas empresas se dediquem a
reduzir o número de trabalhadores de forma cruel, estes despedimentos – e
o aumento de responsabilidade para os que permanecem -, recaem
invariavelmente sobre os que se dedicam a fabricar, transportar, reparar
e manter as coisas.
Devido a uma estranha metamorfose, que
ninguém é capaz de explicar, o número de administrativos assalariados
parece continuar a aumentar. O resultado, e isto acontecia também com
os trabalhadores soviéticos, é que cada vez há mais empregados que,
teoricamente, trabalham 40 ou 50 horas semanais, mas que, na prática, só
trabalham as 15 horas previstas por Keynes, já que levam o resto do dia
a organizarem ou a participarem em seminários motivacionais,
actualizando os seus perfis do Facebook ou fazendo downloads de vídeos e
musica.
É claro que a reposta não é económica,
mas sim moral e política. A classe dirigente descobriu que uma população
feliz e produtiva com abundante tempo livre nas suas mãos representa um
perigo mortal (recordemos o que começou a acontecer na primeira vez em
que houve uma pequena aproximação a algo deste tipo, nos anos 60). Por
outro lado, o sentimento de que o trabalho é um valor moral em si mesmo e
que quem não esteja disposto a submeter-se a uma disciplina laboral
intensa durante a maior parte da sua vida não merece nada, é algo que
lhes é muito conveniente.
Certa vez, ao contemplar o crescimento
aparentemente interminável de responsabilidades administrativas nos
departamentos académicos britânicos, imaginei uma possível visão do
inferno. O inferno é um conjunto de indivíduos que passam a maior parte
do seu desempenhando tarefas de que nem gostam nem fazem especialmente
bem. Imaginemos que se contratam uns marceneiros altamente qualificados e
que, de repente, descobrem que o seu trabalho consistirá em passarem
grande parte do dia a fritarem peixe. Não é que a tarefa realmente
necessite de ser feita – há apenas um número muito limitado de peixes
que é preciso fritar. Ainda assim, todos eles tornam-se obcecados com a
suspeita de que alguns dos seus companheiros possam passar mais tempo a
talhar madeira do que a cumprirem as suas responsabilidade como
fritadores de peixe que, rapidamente, vamos encontrar pilhas
intermináveis de inútil peixe mal frito, acumulado por toda a oficina,
acabando, todos eles, por se dedicarem exclusivamente a isso.
Acho que esta é realmente uma descrição bastante precisa da dinâmica moral da nossa própria economia.
Estou consciente de que argumentos como
este vão ter objecções imediatas. “Quem és tu para determinar quais os
trabalhos que são ‘necessários’? O que é necessário, afinal? És
professor de antropologia, explica-me a ‘necessidade’ disso? “. (E, na
verdade muitos leitores de imprensa cor-de-rosa classificariam o meu
trabalho como a definição por excelência de um investimento social
desperdiçado). E, em certo sentido, isso é obviamente verdadeiro. Não há
uma forma objectiva de medir o valor social.
Não me atreveria a dizer a uma pessoa que
está convencida de estar a contribuir com algo importante para a
humanidade, de que, na verdade, está equivocada. Mas o que se passa com
aqueles que têm a certeza de que os seus trabalhos não servem para nada?
-Não há muito tempo atrás retomei o contacto com um amigo de escola que
não via desde os meus 12 anos. Fiquei espantado ao descobrir que nesse
intervalo de tempo, ele se tinha tornado poeta, e, foi vocalista de uma
banda de rock indie. Inclusivamente, tinha ouvido algumas das suas
músicas na rádio sem ter ideia que o cantor era meu amigo de infância.
Ele era, obviamente, uma pessoa inovadora e genial, e o seu trabalho
tinha, sem dúvida, melhorado e alegrado a vida de muitas pessoas em todo
o mundo.
No entanto, depois de um par de álbuns sem sucesso, perdeu o
contrato com a editora e atormentado com dívidas e uma filha
recém-nascida, acabou, como ele descreveu, por “tomar a opção que, por
exclusão, muitas pessoas sem rumo escolhem: a Faculdade de Direito”.
Agora é um advogado de negócios e trabalha numa proeminente empresa de
Nova York. Ele foi o primeiro a admitir que o seu trabalho era
totalmente sem sentido, não contribuindo em nada para a humanidade e
que, na sua própria opinião, nem sequer deveria existir.
Chegados aqui há uma série de perguntas
que podemos fazer. A primeira seria: o que é que isto revela sobre a
nossa sociedade que parece gerar uma procura extremamente limitada para
poetas e músicos talentosos, mas uma procura aparentemente infinita de
especialistas em direito empresarial. (Resposta: Se 1% da população
controla a maior parte da riqueza disponível, o denominado “mercado”
reflectirá o que essa ínfima minoria, e ninguém a não serem eles, acha
que é útil ou importante). Mas, ainda mais, isto mostra que a maioria
das pessoas nesses empregos estão conscientes desta realidade. Na
verdade, creio que nunca conheci nenhum advogado corporativo que não
achasse que o seu trabalho é uma estupidez. O mesmo é válido para quase
todos os novos sectores anteriormente mencionados.
Há toda uma classe de
profissionais assalariados que se os encontrarmos numa festa e lhes
confessarmos que nos dedicamos a algo que pode ser considerado
interessante (como, por exemplo, a antropologia) evitam falar da sua
profissão. Mas, depois de algumas bebidas, é vê-los a fazerem discursos
inflamados sobre a estupidez e a inutilidade do seu trabalho.
Há aqui uma profunda violência
psicológica. Como é que podemos fazer uma discussão séria sobre a
dignidade laboral quando há tanta gente que, no fundo, acha que o seu
trabalho nem sequer deveria existir? Inevitavelmente, isto dá lugar ao
ressentimento e a uma raiva muito profunda. No entanto, é no engenho
peculiar da nossa sociedade que os governantes encontraram uma maneira –
como no exemplo dos fritadores de peixe – de garantir que a raiva é
dirigida precisamente contra aqueles que realizam tarefas úteis. Parece
mesmo haver na nossa sociedade uma regra geral segundo a qual quanto um
trabalho é mais benéfico para os outros, pior é a sua remuneração. Mais
uma vez é difícil encontrar uma avaliação objectiva, mas uma maneira
fácil de ter uma ideia seria perguntarmo-nos: que aconteceria se todo
este grupo de trabalhadores simplesmente desaparecesse?
Diga o que se
disser sobre enfermeiros, empregados do lixo ou mecânicos, é óbvio que
se eles desaparecessem numa nuvem de fumo, os resultados seriam
imediatos e catastróficos. Um mundo sem professores ou trabalhadores
portuários não tardaria a estar em apuros e um mundo sem escritores de
ficção científica ou músicos de ska seria, sem dúvida, um mundo pior.
Ainda não está totalmente claro quanto sofreria a humanidade se todos os
investidores de capital privado, lobyistas, investigadores,
seguradores, operadores de telemarketing, oficiais de justiça ou
consultores legais se esfumassem da mesma forma. (Há quem suspeite que
tudo melhoraria sensivelmente). No entanto, para além de um punhado de
bem elogiadas excepções, como, por exemplo, os médicos, a “regra”
mantém-se com surpreendente frequência.
Ainda mais perversa é a noção
generalizada de que é assim que as coisas devem ser. Este é um dos
segredos do êxito do populismo de direita. Podemos comprová-lo quando a
imprensa sensacionalista suscita o ressentimento contra os trabalhadores
do metro por paralisarem Londres durante um conflito laboral. O simples
facto de que os trabalhadores do metro possam paralisar toda a cidade
de Londres demonstra a necessidade do trabalho que desempenham, mas é
precisamente isso que parece incomodar tantas pessoas. Nos Estados
Unidos vão ainda mais longe; os Republicanos tiveram muito êxito
propagando o ressentimento relativamente aos professores ou aos
operários do sector automóvel ao chamar a atenção para os seus salários e
prestações sociais supostamente excessivos (e não contra os
administradores escolares e gestores da indústria automóvel que são quem
realmente causa os problemas, o que é significativo).
É como se eles nos estivessem a dizer:
“mas sim, tens a sorte de poder ensinar crianças! Ou fazer carros!
Fazeis trabalhos de verdade! E, como se fosse pouco, tendes a desfaçatez
de reclamar pensões de reforma e cuidados de saúde equivalentes às da
classe média!?”
Se alguém tivesse desenhado um regime de
trabalho com o fim exclusivo de manter os privilégios do mundo
financeiro dificilmente podia ter feito melhor. Os trabalhadores que
realmente produzem sofrem uma exploração e uma precariedade constantes.
Os restantes dividem-se entre o estrato aterrorizado e universalmente
desprezado dos desempregados e outro estrato maior, que basicamente
recebe um salário em troca de não fazer nada, em lugares desenhados para
que se identifiquem com a sensibilidade e a perspectiva da classe
dirigente (directores, administradores, etc.) – e em particular dos seus
avatares financeiros – a qual, ao mesmo tempo, promove o crescente
ressentimento contra aqueles cujo trabalho tem um valor social claro e
indiscutível.
Evidentemente que este sistema não é fruto de um plano
inicialmente previsto, mas emergiu como o resultado de quase um século
de tentativas e erros. E é a única explicação possível para o facto de,
apesar da nossa capacidade tecnológica, não se ter implantado ainda a
jornada laboral de três ou quatro horas.
“On the Phenomenon of Bullshit Jobs” by David Graeber, aqui
Traduzido pelo Colectivo Libertário Évora a partir da versão espanhola.