19/05/2016

Nuit Debout, Convergências, Horizontalidade

"Apesar de todos os obstáculos, existe uma base objectiva para esta convergência: a condição salarial. A aproximação está tanto mais facilitada quanto actualmente o neoliberalismo passou a maltratar de forma cega e uniforme até a sua própria base social à priori, a saber, os estudantes, futuros quadros do capitalismo, mas condenado por ele a precariedade, e em formas cada vez mais degradadas, de inserção no mundo do trabalho – e isso no momento em que os estudantes alimentavam ambições em relação à sua trajectória escolar … E descobrem que estas serão logradas."

Nuit Debout, o movimento francês que se está a espalhar para além do território gaulês, convenientemente, continua a não ter eco nos principais orgãos de comunicação social. Esta é uma entrevista com Xavi Espinet para o jornal de Barcelona El Crítico, feita em 16 de Abril publicada em 23 de Abril, por Fréderic Lordon. 

Em Portugal algumas pessoas começam a aderir a este movimento e podem encontra-los neste link.

Na sua opinião, o que fez com que o governo se decida a propor um projecto de reforma? E de que forma a lei "El Khomri" seria um símbolo?  

Não há nenhuma outra explicação senão a absoluta cegueira ideológica. Este governo dito de esquerda faz na realidade e em todos os domínios a política a mais à direita que qualquer outro governo na V República fez. Considerando os acontecimentos com algum recuo, vemos que existe um verdadeiro acontecimento político à escala histórica do regime. As suas consequências não vão tardar a manifestar-se – o mais tardar nas eleições de 2017 – e serão de grande amplitude. Estamos a assistir a uma liquidação histórica da social-democracia francesa – o que na realidade é um alívio. Mas será necessário que ela fique ainda mais à direita do que qualquer outro governo para que esta liquidação seja definitiva. 

Enfim, o fanatismo neoliberal do partido socialista que conduziu este governo a propor esta lei que nem o Sarkozi teria apresentado. Dá-nos uma ideia do estado de decomposição intelectual e de perdição ideológica no qual se encontra este partido, que só já tem com a esquerda relações de inércia nominal. Mas mais que o isolamento ideológico no qual se encontram é preciso ter perdido contacto com o estado real da sociedade e tudo ignorar do sofrimento e da precariedade geral em que se encontra o trabalho assalariado, para ter a ideia louca de querer aprofundá-los ainda mais.


Depois da derrota das mobilizações contra as novas leis das reformas de Sarkozy a rua "grita" de novo, que relações deverá ter segundo você a NUIT DEBOUT com a mobilização sindical contra a reforma da legislação do trabalho?  

Relações muito mais estreitas do que as que existem actualmente. Não haverá transformações políticas amplas sem um movimento popular de massas. Ora um tal movimento toma necessariamente, em parte, a forma de uma greve geral. E não existe greve geral sem a cooperação das variadas organizações de assalariados, tão simples quanto isto. Mas mesmo sem certezas (é um eufemismo) quanto à activação efectiva da greve geral – e embora tenhamos de fazer tudo o que pudermos para aumentar a probabilidade - é de uma importância estratégica juntar as diferentes facções da esquerda que geralmente estão separadas por barreiras sociológicas, em particular a esquerda militante do centro das cidades e a das classes operárias sindicalizadas. 

Apesar de todos os obstáculos, existe uma base objectiva para esta convergência: a condição salarial. A aproximação está tanto mais facilitada quanto actualmente o neoliberalismo passou a maltratar de forma cega e uniforme até a sua própria base social à priori, a saber, os estudantes, futuros quadros do capitalismo, mas condenado por ele a precariedade, e em formas cada vez mais degradadas, de inserção no mundo do trabalho – e isso no momento em que os estudantes alimentavam ambições em relação à sua trajectória escolar … E descobrem que estas serão logradas. 

Temos aqui todos os ingredientes para o reencontro das classes sociais que a sua heterogeneidade mantinha afastadas. Mas não posso acabar esta resposta sem mencionar que existe uma comissão “greve geral” no NUIT DEBOUT, à qual devemos as primeiras acções muito concretas e em particular o facto de ter organizado uma delegação de estudantes na gare Saint-Lazare para ir encontrar os operários ferroviários no dia 12 de abril. Estas acções são absolutamente exemplares e é em multiplicando essas acções que estaremos a altura das nossas palavra de ordem, CONVERGÊNCIA DAS LUTAS.

Muitos vêem em NUIT DEBOUT um fenómeno geracional. Porque será que esta juventude, que consideramos despolitizada, manifesta o seu "ser" político fora dos canais institucionais?

Da minha parte estou reticente à ideia de classificar NUIT DEBOUT numa categoria de “fenómeno geracional”. Muitas vezes a recodificação “geracional” de um fenómeno social é típico do comentário mediático – e reconhecendo as coisas com lucidez uma das razões pela a qual o acolhimento mediático não foi muito mau, havendo resposta dos jornalistas, na maioria das vezes sem se aperceber, a relações de afinidade sociológica ¾ que estão totalmente ausentes, quando se trata de movimentos sindicais clássicos: e de maneira igualmente inconsciente os média entregam-se a um racismo social aberto. Em todos os casos o ponto importante é o seguinte: a “recodificação geracional” arrisca-se sempre a funcionar como um operador de despolitização, é só uma "história de jovens" logo uma história sem importância que passará quando ficarem velhos – o mais rapidamente possível, esperam eles e entretanto estão prontos a fazer prova de mansidão desde que não vá longe demais, eis onde nos leva a análise "geracional" … 

Dito isto, observo, mesmo que seja através do meu ponto de vista, que é parcial como todos os pontos de vista, uma efervescência intelectual e política inédita da juventude estudantil universitária, e mesmo - é um facto extremamente marcante – dos jovens dos liceus, recebo cada vez mais contactos e solicitações dos estudantes dos liceus, que testemunha posso vos dizer, uma consciência política critica muito afinada, é um fenómeno completamente novo. Os governos que estarão assumirão os cargos daqui 10, 15 anos podem estar preocupados, alguns problemas sérios os esperam que amadurecem desde já!

Aquando da sua intervenção a 31 de Março você apelava ao "desejo político que surge e afirma". Em plena crise do Estado-nação e política, qual seria o tema deste desejo e de quais "objectos políticos" poderia / se deveria apropriar? E que responderia você a todos os que qualificam esta "afirmação" renovada todas as noites na Place de la République de puramente "voluntarista"?  

O sujeito de esse desejo é inatingível definir previamente. O "nós constrói-se no próprio processo das realizações. “Convergência de lutas" é uma estenografia que fala do seu desejo de ser o mais alargada possível – e se quisermos nomear especificamente os seus componentes: a juventude urbana precarizada, as classes operárias sindicalizadas (e na realidade em termos gerais todo o mundo do trabalho), os bairros suburbanos abandonados. Quanto aos seus objectos ele irá escolhê-los ele mesmo. 

É certo que de qualquer maneira este movimento não se deve abandonar ao seu arrebatamento intransitivo de si mesmo, e se a sua energia não se converte em desejos definidos - em objectivos políticos explícitos – ele será improdutivo. Conservar a ideia do objectivo supõe recordar em permanência da necessidade de lutar contra as divisões nos debates. Pela minha parte vejo-o como "um movimento telescópico", quero dizer em que se daria uma graduação de objectivos indo de (próxima) retirar a lei “El Khomri”, à (mais tardia) elaboração de uma constituição para uma república social, passando por toda uma serie de ideias "intermédias" a impor no debate político à imagem por exemplo da imposição feita à banca de se descomprometer totalmente de actividades especulativas mas sobre isto poderíamos falar aqui de muito mais coisas. 

Haverá nisto tudo um "voluntarismo da afirmação"? Mas qual política não funciona assim? Mesmo que, claro, não se possa contentar com isso, a intervenção política faz uso essencialmente da declaração performativa. Dizer "há" é um meio de contribuir para fazer existir a coisa da qual dizemos que existe antes que ela exista mesmo. E é verdade: é um tipo de intervenção que é tal como uma aposta, mesmo que a aposta esteja perdida, ela semeia qualquer coisa que fará o seu caminho: uma ideia, o sentimento de um problema, uma exigência, etc.

Sieyes, na revolução francesa, enunciava o princípio da democracia representativa, a vontade popular só se pode exprimir através dos representantes do povo. Pela sua própria configuração NUIT DEBOUT mete em questão estes princípios e a democracia representativa é duramente criticada em cada AG. Que novos modos de decisão/legitimação/criação políticas vos parece fazer antever os NUIT DEBOUT?

O que vou dizer vai sem dúvida valer-me uma repreensão da parte de NUIT DEBOUT mas não importa. Eu penso que na escala macroscópica não há política sem uma forma ou outra de institucionalização, e mesmo de representação. De resto a AG de NUIT DEBOUT não está conforme ao modelo de horizontalidade que reivindica ser. Por exemplo não há AG sem regras de tempo de fala, de vez, respeito do moderador, regras gestuais de manifestação de opinião etc. ¾  e estas regras têm por definição um carácter institucional e vertical porque se impõem a todos, têm autoridade, todos reconhecem ¾  conceptualmente a verticalidade é isto. 

Lidamos desde logo e a esta escala, com a instituição vertical o que prova bem a inanidade de uma palavra de ordem maximalista horizontalidade pura, de facto insustentável. A verdadeira questão não está em absurdas antinomias "instituição vs não instituição" ou "horizontal vs vertical" mas na maneira como "mobilamos" as nossas instituições, e com a qual conseguimos conter a verticalidade que necessariamente produzimos pelo simples facto de nos organizarmos colectivamente. A NUIT DEBOUT pode, mesmo que se verticalize, manter uma configuração o mais próximo possível de essas ideias de horizontalidade e de democracia directa. Mas só o pode sem dúvida por razão da escala reduzida em que opera. 

É preciso então juntar duas ideias que na realidade não têm nada de contraditório, por um lado a configuração institucional de uma colectividade à escala macroscópica, digamos nacional, não poderia ser a simples copia do modelo experimentado à escala da Place de la République, mas inversamente a NUIT DEBOUT ilustra nela mesmo princípios genéricos que devem guiar a elaboração de uma configuração institucional global: subsidiariedade máxima, o que quer dizer a maior delegação de autonomia possível ao nível local, desconfiança no que toca ao potencial de captura que representa toda a institucionalização, controlo apertado dos representantes e dos porta voz – controlo que significa revogabilidade permanente (regulamentada) - organização da escuta constante dos níveis de organização inferiores através dos níveis superiores, em particular para não deixar aos níveis superiores o monopólio da iniciativa que transformaria os níveis inferiores em simples câmaras de aprovação: As ideias devem circular nos dois sentidos e os níveis superiores continuam a inspirar-se dos níveis inferiores.

Saber estender o movimento às classes populares dos bairros periféricos das grandes cidades parece-lhe ser uma condição necessária para seu sucesso e legitimidade. E o que se passa com as classes populares da "França periférica" notavelmente "LEPENizadas"? Como se dirigir a uns sem provocar a reprovação dos outros? E caso não se consiga construir uma linguagem comum haverá o perigo de um género de reacção popular "pro status quo" gaulista como em 68?  

É uma pergunta tão decisiva que é quase dolorosa ... Quando vemos as dificuldades em simplesmente juntar a acção de facções politizadas mas sociologicamente heterogéneas como são as classes operárias sindicalizadas e os meios da militância urbana, medimos lucidamente as barreiras a ultrapassar, para tecer laços por um lado com a população dos bairros e por outro as populações da "França periférica" como você diz - nem é preciso insistir em tudo o que opõe esses dois grupos,,, Não podemos ter ilusões, acontecimentos como NUIT DEBOUT não tem nele nenhum poder para alterar tão profundamente essa realidade social tal como a desLEPENização. 

Essas são questões de militância local, pertinaz, a maior parte das vezes invisível que parte à conquista das pessoas uma a uma ou quase. O movimento NUIT DEBOUT pode no entanto contribuir para colocar na paisagem politica, uma verdadeira proposta de esquerda, que se vingar poderá num certo prazo aparecer como uma verdadeira alternativa aceitável para aqueles que tinham considerado FN como alternativa. Escusado será dizer que não será uma obra fácil....

NUIT DEBOUT parece ser o fim do reducionismo reivindicativo das lutas e ultrapassaria as ambições de mobilização sindical contra a lei “El Khomri”. Você declara a morte da actual ordem política francesa e apela a uma repúblicasocial. O rei está enfim nu? NUIT DEBOUT uma assembleia constituinte? E que fazer para que efectivamente se venha a tornar nisso?  

A fórmula "não reivindicamos nada" deve ser adequadamente compreendida - apercebi-me "post festum" que ela tinha criado toda uma serie de mal entendidos sobretudo com os sindicatos, onde afrontava a própria gramática da acção que é sobretudo reivindicativa. É claro que não se trata aqui de declarar caducas as lutas reivindicativas onde elas acontecem - não seria pertinente, e provavelmente muito estúpido. Mas trata-se aqui de chamar a atenção ao facto que as reivindicações, por construção, se exprimem num quadro que não é, ele próprio, posto em questão... e isso, quando esse quadro define as condições de possibilidade (ou impossibilidade) de algumas reivindicações. 

O sucesso de uma reivindicação de subida do salário mínimo, por exemplo, passa a ser altamente improvável se esquecermos de por logo em questão as estruturas da mundialização ¾ o poder dos accionistas, o livre-câmbio sem limites, as deslocalizações ¾ que opõem objectivamente todo o tipo de constrangimentos ao aumento dos salários. Pedir "uma outra divisão da riqueza" é em vão se não considerarmos as estruturas que determinam a partilha das riquezas. O célebre TINA (there is no alternative) continuará verdadeiro enquanto não dermos atenção ao conjunto de estruturas neoliberais que o tornam verdadeiro! E fora das quais ele deixa instantaneamente de ser verdadeiro. Para se substituir TINA por TIAA (there is an alternative!) é preciso criar as condições de possibilidade estrutural - quer isso dizer redesenhar o quadro. Alterar o quadro é diferente de reivindicar, é começar um processo altamente político de reconstrução institucional, no sentido mais largo da palavra "instituição". 

Esse processo toma uma amplitude ainda maior quando se eleva ao nível de assembleia constituinte – neste caso o meta-quadro. Vemos bem que não existe ninguém a quem levar esta "reivindicação" de uma Assembleia Constituinte! É o povo ele próprio, que se deve apropriar desse desejo, que o afirma e que o coloca. Agora é preciso elaborar o estatuto de um apelo a uma assembleia constituinte que advém de duas interpretações diferentes. A primeira tem a ver, uma vez mais com o registo performativo da intervenção política. Chamar a uma assembleia constituinte é uma maneira de colocar problemas, dois em particular:

• Consideramos que o sistema institucional actual, o da V republica, está a dar as últimas, que nenhuma transformação significativa do quadro se pode produzir, e que deve ser inteiramente revisto, para a re-democratização, e para permitir diferenças políticas significativas - porque em definitivo é isto a democracia: a possibilidade sempre presente de fazer de outra maneira;

• Uma assembleia constituinte impõe-se igualmente não como jogo político, mas como meio de dar a mais alta forma jurídica aos princípios fundamentais dum modelo de sociedade: da mesma forma que as constituições sucessivas das repúblicas francesas, mais ou menos todas iguais! Tinham por finalidade real, santificar o direito de propriedade que é a base do capitalismo, parece que o projecto de acabar com o império do capital sobre a sociedade só pode passar por uma destituição do direito de propriedade e estabelecer a instituição da propriedade de uso (propriedade quer obviamente dizer meios de produção e não bens pessoais). Só um texto com o alcance jurídico da constituição pode operar esta mudança realmente revolucionária.

E eis, em poucas palavras, a segunda leitura do apelo a uma Assembleia Constituinte uma leitura histórica e estratégica: é preciso ver bem tudo o que nos afasta na realidade de um processo constituinte, com tanto mais razão pois nos conduziria a uma república social, como a imagino, a saber como acabar com o direito a propriedade (no sentido referido anteriormente)! Nesta segunda leitura, positiva, a Assembleia Constituinte é a consagração de um processo revolucionário a chegar, da qual é na realidade a condição da possibilidade. Mas então porque se projectar assim num horizonte quase irreal? Porque é uma maneira de meter os problemas na agenda do debate político. É uma maneira de colocar firmemente no espaço público que existe um problema com as instituições de desapropriação, e que há um problema com o império do capital sobre a sociedade - como a lei “El Khomri” tem a virtude de nos mostrar da forma mais clara que nunca. Sem dúvida uma longa caminhada nos separa da solução para os dois problemas, mais uma razão para começarmos já!! 

[Pergunta inevitável de jornal ibérico] As eleições 2017 aproximam-se, tirando o facto que o quadro político à esquerda do PS não parece querer criar novos partidos, você afirma que um PODEMOS à francesa seria contraproducente. Porquê?

A assembleia constituinte é também uma resposta a essa questão. Acho que temos que sair do que eu chamo de antinomia Occupy Wall Street  (OWS) /5M-PODEMOS. De um lado o OWS, movimento que infelizmente fez a demonstração da sua improdutividade política directa (isto é, excluído o efeito subterrâneo que nos trouxe Bernie Sanders). E por outro lado o 15-M que só foi produtivo ao se prolongar sob a forma do PODEMOS, quer dizer sob a forma que trai o espírito original: partido clássico, leader clássico, classicamente obcecado pelas eleições e decidido a entrar no jogo o mais classicamente do mundo: nas instituições tais como elas são e sem demonstrar o mínimo desejo de as alterar. O apelo a uma assembleia constituinte é uma maneira de sair desta contradição da improdutividade ou do regresso às eleições. É preciso produzir "algo" mas este "algo" não pode ser devolvido ao funcionamento das instituições já existentes. Em conclusão esse "algo" pode consistir precisamente na transformação das instituições

Frédéric Lordon
 
a tradução deste artigo foi feita pelo RiseUp Portugal