"A
questão é que a UE é apenas uma máscara que disfarça o domínio de um
grande grupo de países por um pequeno grupo de países, numa nova forma
de ocupação que usa a finança como instrumento de submissão, como antes
se usavam tanques.
A questão é que a UE é uma organização
antidemocrática, que não só é governada por dirigentes não eleitos e não
removíveis, da Comissão Europeia ao Banco Central Europeu, como
construiu ardilosamente uma camisa de forças jurídica, sob a forma de
tratados irreformáveis de facto, através da qual manieta e subjuga os
Estados-membros e lhes impõe políticas que estes não escolheram, mas não
podem recusar."
Era um dia de Primavera de 1995. Atravessei de carro a ponte sobre o
rio Minho, ao pé de Valença, em direcção à cidade galega de Tuy, e não
aconteceu absolutamente nada. Foi um dos momentos mais emocionantes da
minha vida.
Eu estava habituado a entrar em Espanha depois de
parar na fronteira, esperar numa bicha interminável de carros e camiões,
mostrar o passaporte, responder a perguntas dos guardas e deixar o
carro ser revistado antes de poder seguir caminho. E a travessia desta
fronteira despertava sempre recordações de antes do 25 de Abril, onde a
espera era ainda mais demorada, as perguntas mais agressivas, os
polícias mais desagradáveis e as revistas mais rigorosas, principalmente
para os jovens que tinham de apresentar os seus documentos militares em
ordem e podiam estar a preparar-se para fugir à guerra colonial.
Foi
por isso que atravessar a ponte e entrar em Espanha sem ver um único
polícia, sem ver um posto de fronteira, sem mostrar um documento, foi
uma experiência inesquecível.
Na altura eu era ainda um ingénuo
adepto da União Europeia e aquilo era para mim a Europa. Não só a
liberdade de circulação, mas a corporização da própria liberdade dos
cidadãos, da confiança na sociedade, da cooperação e da solidariedade
entre os estados.
Eu era então, como me considero ainda hoje, um
europeu e um europeísta. Nascido entre dois países e duas línguas,
educado entre quatro línguas, habituado a desconfiar de todos os
nacionalismos, a ideia de uma Europa que transcende os seus países
sempre me foi cara.
É por isso que, na próxima quinta-feira,
quando conhecermos os resultados do referendo no Reino Unido, eu espero
ardentemente que o resultado seja a vitória do “Brexit”.
Não
porque penso que o Reino Unido vá ficar melhor fora da UE. Não porque
pense que a UE vai ficar melhor sem o Reino Unido. Mas apenas porque
espero que a saída do Reino Unido seja o choque que irá provocar o abalo
político, o exame de consciência e o toque a rebate democrático de que a
União Europeia precisa para se reformar de forma radical e para se
reconstruir, num formato e com regras diferentes, sob o signo da
decência. E não penso que isso seja possível sem uma vitória do
“Brexit”.
O presidente do Parlamento Europeu, o socialista Martin
Schulz, já disse: “Seja qual for o resultado [do referendo], teremos
necessidade de uma reforma integral da União Europeia com regras
claras.” Mas o problema é que já ouvimos dizer a mesma coisa noutras
circunstâncias para tudo ficar na mesma. Ouvimo-lo dizer depois da
guerra do Iraque, da crise financeira de 2008, da crise das dívidas
soberanas, das políticas de austeridade, da crise dos refugiados. Mas
sabemos que não podemos acreditar em nada do que sai da boca dos
dirigentes da UE.
A questão é que a UE não é aquela associação
entre iguais que nos venderam, empenhada no progresso de todos os países
e no bem-estar de todos os cidadãos, no pleno emprego e na segurança
dos trabalhadores, na paz mundial e na promoção da democracia.
A
questão é que a UE é apenas uma máscara que disfarça o domínio de um
grande grupo de países por um pequeno grupo de países, numa nova forma
de ocupação que usa a finança como instrumento de submissão, como antes
se usavam tanques.
A questão é que a UE é uma organização
antidemocrática, que não só é governada por dirigentes não eleitos e não
removíveis, da Comissão Europeia ao Banco Central Europeu, como
construiu ardilosamente uma camisa de forças jurídica, sob a forma de
tratados irreformáveis de facto, através da qual manieta e subjuga os
Estados-membros e lhes impõe políticas que estes não escolheram, mas não
podem recusar.
A questão é que a UE e as suas instituições se
transformaram na tropa de choque do poder financeiro mundial e da
ideologia neoliberal e, apesar das suas juras democráticas, impõem a
agenda asfixiante da austeridade e proíbem de facto os países de
prosseguir políticas nacionais progressistas mesmo quando elas são a
escolha democrática dos seus povos.
A questão é que a UE,
autoproclamado clube das democracias e dos direitos humanos, acolhe no
seu seio sem um piscar de olhos países que desrespeitam os direitos mais
básicos e adopta no plano internacional a Realpolitik de se submeter aos mais fortes, obedecer aos mais ricos e fechar os olhos aos desmandos dos mais agressivos.
A
questão é que a UE perdeu o direito de reivindicar qualquer
superioridade moral quando continuou a atirar refugiados para a morte
mesmo depois de ter chorado lágrimas de crocodilo sobre a fotografia de
uma criança afogada no Mediterrâneo. Hoje, tenho vergonha de pertencer a
este clube e não gosto desse sentimento. Será isto isolacionismo? Pelo
contrário. O que eu e muitos cidadãos europeus exigimos é a
solidariedade entre países que a União se recusa a praticar.
Há
pessoas pouco recomendáveis do lado do “Brexit”? Há. Mas do outro lado
também. E na UE não faltam pessoas pouco recomendáveis, a começar pelo
senhor Jean-Claude Juncker, símbolo da evasão fiscal e da imoralidade
política.
A questão é que a União Europeia não é a Europa dos
valores que sonhámos. A UE capturou essa Europa e transformou-a num
bordel. O sonho transformou-se num pesadelo.
A questão é que a
União Europeia se tornou o ninho da serpente e deve ser desmontada peça
por peça. Espero que o referendo britânico possa ser o primeiro passo.
por José Vítor Malheiros no Público