A
minha família nāo desgostava de touradas. Não que se babassem por ir
ver o Tito Capristano à Moita ou o Nelo Cagarras a Santarém, mas lá em
casa, se passava uma Corrida, a malta ficava a ver. Nas férias
andaluzes, chegados ao apartamento com sal mediterrânico, o meu Pai
punha na TVE e até ao jantar sorvíamos a cantilena espanhola dos comentadores especialistas e 8 ou 10 toiros de morte.
Não éramos aficionados mas gostávamos de ver. Do espectáculo. Da arte
do matador. Da faena. Da orquestra. Do tribalismo. Só não podíamos ver
os cavaleiros. Gajos de jaqueta brilhante montados num cavalo a espetar
farpas que se transformavam em bandeirinhas que acenavam ao público.
Degradante. O cavaleiro é o cobarde da tourada, é o puto que insulta e
depois foge. Tínhamos, eu e o meu Pai, um sonho: unir a Ibéria numa só
tourada: matadores espanhóis, forcados portugueses. Os cavaleiros
passariam a alisar a areia, a limpar os estábulos e a dar água aos
toiros.
Olho
a televisão com o canal público a dar tourada. Aquelas mesmas caras de
sempre de olhar bovino. Caras de gente laranja, de bigodes falsamente
aristocráticos, as famílias da "tradição", os betos e os que querem
passar por betos, as calças caqui, os penteados, as patilhas, uma
portugalidade meio bizarra que parece advir de promíscuas relações entre
primos e irmãos. Esta gente que ali está atrás das tábuas funde-se com
as vacas em noites de Inverno: por isso aquele bovino olhar, a mansidão
das carecas reluzentes, a lhaneza.
Pai, eu já não posso continuar a ver isto. Não é fácil questionarmos as coisas que enquanto crescemos eram naturais. Mais difícil quando as víamos junto aos que amamos. O meu Pai gostava de ver e eu via e também gostava porque gostava dele. Vamos continuar a ir aos nossos sítios a que íamos sempre juntos. Vamos a Moledo, a Ceuta, a Sevilha, a Mijas, ao Forte de Peniche, às Caldas do Luiz Pacheco, a Vilarelho ouvir o Maestro Coca-Cola Killer ensinar Bach às gentes do campo, vamos continuar a ir ao Estádio da Luz e a abraçarmo-nos dentro dos golos do Benfica, mas, Pai, a TVE para mim acabou.
Pai, eu já não posso continuar a ver isto. Não é fácil questionarmos as coisas que enquanto crescemos eram naturais. Mais difícil quando as víamos junto aos que amamos. O meu Pai gostava de ver e eu via e também gostava porque gostava dele. Vamos continuar a ir aos nossos sítios a que íamos sempre juntos. Vamos a Moledo, a Ceuta, a Sevilha, a Mijas, ao Forte de Peniche, às Caldas do Luiz Pacheco, a Vilarelho ouvir o Maestro Coca-Cola Killer ensinar Bach às gentes do campo, vamos continuar a ir ao Estádio da Luz e a abraçarmo-nos dentro dos golos do Benfica, mas, Pai, a TVE para mim acabou.
Há
qualquer coisa de profundamente degradante nas touradas. Não é só o
sofrimento do animal, é o espanto com que ele observa os animais da
bancada. A incredulidade de estar perante a maldade do mundo. O toiro
leva nos olhos uma tristeza de estar assistindo à vileza do humano.
Porte imponente, músculos fortes, cornos pontiagudos, nobreza de
carácter, mas os olhos. É nos olhos do toiro que nós vemos a sua
ingenuidade. Uma criança perdida no meio da multidão.
O animal sorve a vida de forma natural. Passa anos a comer ervinhas, a ver pores-do-sol, a esfocinhar amorosamente com outros animais. Vive a vida em liberdade, em campos abertos de luz, por onde pode correr, parar, dormitar, ficar só a ver. Ficar só a viver. Recebe arco-íris com uma chuvinha que lhe molha a língua e as dentolas, afasta borboletas e mosquitos com um espirro, ressona e acorda os pássaros da árvore onde está encostado. O animal não reflecte sobre o mundo, mas vive-o. Sobretudo, sente-o. Os elementos da natureza são-lhe prazenteiros. É-lhe natural ir beberricar aquela água, comer este molhe de ervas, cagar ou mijar onde lhe apetecer. O céu é-lhe natural, as nuvens e o Sol, os caminhos de terra, as plantas, os passarinhos. Aquela brisa que vem em Agosto com cheiro a cereais. Ele levanta a cabeça, fecha os olhos e sente-a. Não pensa sobre ela, mas sabe-a.
O animal sorve a vida de forma natural. Passa anos a comer ervinhas, a ver pores-do-sol, a esfocinhar amorosamente com outros animais. Vive a vida em liberdade, em campos abertos de luz, por onde pode correr, parar, dormitar, ficar só a ver. Ficar só a viver. Recebe arco-íris com uma chuvinha que lhe molha a língua e as dentolas, afasta borboletas e mosquitos com um espirro, ressona e acorda os pássaros da árvore onde está encostado. O animal não reflecte sobre o mundo, mas vive-o. Sobretudo, sente-o. Os elementos da natureza são-lhe prazenteiros. É-lhe natural ir beberricar aquela água, comer este molhe de ervas, cagar ou mijar onde lhe apetecer. O céu é-lhe natural, as nuvens e o Sol, os caminhos de terra, as plantas, os passarinhos. Aquela brisa que vem em Agosto com cheiro a cereais. Ele levanta a cabeça, fecha os olhos e sente-a. Não pensa sobre ela, mas sabe-a.
De
repente, uma arena! Um cubículo de areia com milhares de pessoas e
vozes e urros! De repente, o horror. Chamam-no, assustam-no, dão-lhe
palmadas na cabeça, espetam-lhe ferros frios no lombo. Encosta-se às
tábuas, sente a madeira, procura um caminho para voltar para o campo.
Está cercado. Cornetas, luzes, gritos. Rios de sangue escorrem-lhe pelo
corpo. O peso das bandarilhas coloridas enquanto corre. Não entende
aquilo, não sabe o porquê. Cansado, ofegante, em pânico, investe contra o
carrossel de homens e cavalos que o rodeiam.
Baixa a cabeça,
com as patas tenta furar o chão como se pudesse abrir um alçapão que o
fizesse cair da arena para um prado onde corresse e lambuzasse as
bochechas de outro toiro. Um campo aberto a céu aberto. Sem cornetas,
sem pessoas, sem gritos, sem bandarilhas coloridas, sem bigodes quase
aristocráticos, sem ferros frios no lombo, sem rios de sangue pelo
corpo, sem maldade. O último sonho do toiro antes de morrer.
por Ricardo Silveirinha