A desobediência civil dá voz a convicções de consciência profundamente sentidas.
A destruição do Estado social imposta pelas medidas do “ajustamento” da
Troika, que alguns analistas consideram violar a “Carta Europeia dos
Direitos Fundamentais”, conferiu ao desempenho do governo maioritário
que nos governa um conjunto de medidas que contrariaram frontalmente os
valores consagrados da Justiça e do Direito – valores voltados a evitar a
punição desproporcional; a distribuição não equitativa de bens e
situações; o não cumprimento do princípio consagrado na lei segundo o
qual “ os contractos legalmente celebrados devem ser legalmente
cumpridos”, ou, dito de outra forma, “pacta sund servanda”.
O
diagnóstico e a avaliação destas medidas, ao identificar a ruptura
trazida por estas políticas, inaugurou na comunidade “o tudo é possível”
e conduziu a que largas faixas da população portuguesa passassem a ser
tratadas como supérfluas e descartáveis. A ruptura no plano jurídico
surge quando a lógica do razoável que permeia a reflexão jurídica não
consegue dar conta da não razoabilidade que caracteriza uma experiência
autoritária e arrogante. É, com efeito, um paradigma organizacional e
uma nova forma de governo que almeja a dominação das minorias através do
uso da ideologia e do emprego da força para promover a ubiquidade do
medo e esfacelar uma cidadania sem direitos. Tal política representa uma
contestação frontal à ideia do valor da pessoa humana enquanto valor-fonte da legitimidade da ordem jurídica.
A violenta austeridade, dita sem alternativa, construiu uma crise que
se virou contra os mais fracos e desprotegidos, mimando os seus
salários e determinando cortes aos pensionistas e reformados, violando
regras elementares do Estado de Direito democrático com o apelo
subversivo ao princípio da não retroactividade da lei, à corrosão do
princípio da confiança e a valores fundamentais esculpidos e cunhados no
texto constitucional. O governo com estas práticas arrogantes e de
reincidência que não ouve os outros, parece encerrado numa torre de
marfim, na qual a crueldade do tenebroso espectáculo da miséria e do
empobrecimento e as vozes fantasmagóricas do desemprego e da fome
abjecta lhe são insensíveis.
Decorre deste estado de coisas, um
ambiente onde se murmura a resistência e o protesto e onde os cidadãos
se mobilizam em greves e manifestações, contra a indignidade que os
arrasta para o patamar da mera sobrevivência, contra a falsificação da
vontade soberana do povo e o abalroamento da cidadania concebida como o
direito a ter direitos. A opressão corrói a autoridade do Direito. Paz
sem voz, não é paz, é medo.
Cabe neste contexto perguntar que
contornos tem assumido o conceito e a prática do protesto neste país de
intolerância para com os mais fracos - assalariados, pensionistas e
reformados e em geral perante a voz clamante das minorias vítimas do
desmembramento em marcha do estado social.
É nosso objectivo e pretensão com este artigo analisar a forma de
protesto consubstanciada na desobediência civil, analisar o seu estatuto
jurídico como direito fundamental humano, e o de compreender o papel
que ela desempenha num regime democrático/constitucional que como o
nosso prevê no seu artigo 21º o direito à resistência, de que a
desobediência civil é um direito associado.
Partimos do princípio
de que num regime democrático que respeite a Constituição há uma
concepção política da justiça, por referência à qual os cidadãos
resolvem as suas questões políticas. A violação persistente e deliberada
dos princípios básicos dessa concepção durante um período de tempo
extenso, em especial a lesão de liberdades fundamentais e dos direitos
sociais das minorias, convida ao protesto e à resistência.
Com
esta escolha e preocupação de expor uma teoria da desobediência civil,
teremos com este artigo a oportunidade de fazer uma síntese da análise
crítica de um dos pontos mais interessantes do Direito, visto que, no
nosso entender, muitas análises têm-se de dicado ao estudo da lei, mas
poucas delas se dedicam à crítica através da contestação da mesma, como
forma de torná-la mais próxima dos que vivem sob a sua égide e desta
forma aparentemente paradoxal, fortalecê-la.
Como foi dito o direito à resistência está previsto na Constituição
da República Portuguesa e é um direito que pertence ao património dos
povos. Ao escrever sobre a tensão entre direito positivo e direito
natural, em “Antígona - Uma Velha Lição Grega”, Sófocles sugere que o
rei Creonte não terá razão ao negar sepultura a um traidor do Estado.
Desta forma ela reaviva a diferença entre legal e legítimo, a partir do
momento em que Antígona declara o direito de resistência.
Segundo
Hannah Arendt, a desobediência civil ocorre quando “um número
significativo de cidadãos se convence de que os canais normais para
mudanças já não funcionam, ou que as queixas não serão ouvidas nem terão
qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de
efectuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja
legalidade e constitucionalidade estão expostos a graves dúvidas”. Esta
perspectiva da desobediência civil encaixa-se eloquentemente na situação
que se vive no país.
Rosa Parks - Estados Unidos |
Um Estado de Direito exige um regime democrático, donde a teoria que
se expõe diz respeito ao papel e á justificação da desobediência civil a
uma autoridade democrática legitimamente estabelecida.
A
desobediência civil dá voz a convicções de consciência profundamente
sentidas.
Ela representa uma forma de dissidência situada nas fronteiras
da fidelidade ao direito. Na verdade, se as políticas forem
flagrantemente contrárias à justiça das minorias e dos estratos mais
enfraquecidos dos cidadãos, temos o dever, e não apenas o direito, de as
recusar.
Nesta perspectiva, a desobediência civil é um dos
mecanismos estabilizadores de um sistema constitucional, embora seja por
definição um mecanismo ilegal. No entanto, quando utilizada em
situações limite, ajuda a manter e a fortalecer as instituições justas.
Ao resistir à injustiça, dentro dos limites do direito, ela serve para
impedir os desvios face às regras da justiça e para os corrigir, caso
ocorram. O facto de os cidadãos estarem em geral dispostos a recorrer à
desobediência civil justificada é um elemento de estabilidade numa
sociedade organizada e justa.
Ghandi - Índia |
A injustiça deliberada é um convite à
submissão ou à resistência. A submissão provoca o desprezo daqueles que
perpetuam a injustiça e reforça as suas intenções, ao passo que a
resistência quebra os laços que unem a comunidade.
Se, após um período
de tempo razoável que permita a manifestação dos protestos políticos
expressos pelas formas normais, os cidadãos respondem à violação das
liberdades fundamentais através do recurso à desobediência civil, tal
facto significaria o reforço, e não o enfraquecimento, destas
liberdades.
Por estas razões, os desobedientes adoptarão as condições
que definem a justificação da desobediência civil como uma forma de
introduzirem, dentro dos limites da fidelidade ao direito, um mecanismo
de último recurso que mantenha a estabilidade de uma constituição justa.
Assim entendida, esta concepção de desobediência civil, faz parte da
teoria do regime político baseado na liberdade.
Embora este modo de
acção seja, em rigor, contrário à lei, ele é, apesar disso, uma forma
correcta de manter um regime constitucional e, como dizem Vital Moreira e
Gomes Canotilho, “pode colher protecção constitucional”. Ela questiona
normas despidas de conteúdo axiológico ou elaboradas em desconformidade
com o consentimento expresso pelo pacto constitucional, que é dado pelo
povo e pela sociedade civil à autoridade constitucional.
Henry David Thoreau - Est. Unidos |
É por estas razões que o cidadão compreende que a desobediência civil
representa uma resposta insuperável e superior à violência das leis
ilegítimas e dos governos. É, nas palavras de Mohands Gandi “um direito
intrínseco do cidadão e reprimir a desobediência civil é aprisionar a
consciência.”
Numa última consideração, cumpre salientar que a sua
aplicação prática não está, muitas vezes, isenta de conflitos, mas “(…)
no entanto se a desobediência civil injustificada ameaçar a paz civil, a
responsabilidade não será daqueles que protestam, mas daqueles cujo
abuso do poder e da autoridade justifica essa oposição.
A utilização do
aparelho coercivo do estado para conservar instituições manifestamente
injustas é em si mesma uma forma ilegítima do emprego da força, à qual
se terá, a partir de certo momento, o direito de resistir (…). (John
Rawls, Teoria da Justiça, fols. 301, Editorial Presença, 3ª edição).
José Augusto Rocha
Advogado
publicado no www.publico.pt