Por que Washington teme quem revelou seus segredos e criou
Wikileaks. As acusações esfarrapadas. Submissão da Suécia, dignidade do
Equador. O 20/8, data crucial
Por John Pilger | Tradução: Inês Castilho
em http://outraspalavras.net (excelente site)
O cerco à Embaixada do Equador, no bairro londrino de Knightsbridge, é
tanto um emblema de injustiça bruta quanto uma farsa cansativa. Há três
anos, um cordão policial em torno do prédio onde se refugiu Julian
Assange não serve a outro propósito exceto ostentar o poder do Estado.
Já custou o equivalente a 65 milhões de reais. A presa é um australiano
que não foi acusado de crime algum, um refugiado cuja única segurança é o
aposento oferecido por um país sul-americano corajoso. Seu “delito” é
ter iniciado uma onda de revelações incômodas, numa era de mentiras,
cinismo e guerra.
A perseguição a Julian Assange está para recrudescer, porque entra num
estágio perigoso. A partir de 20 de agosto, três quartos da acusação dos
promotores do caso contra Assange, relativa a má conduta sexual em 2010
desaparecerão, quando expirarem as limitações a sua defesa. Porém,
intensificou-se a obsessão de Washington para liquidar Assange e o
WikiLeaks. Na verdade, é o poder vingativo de Washington que representa a
maior ameaça — como podem atestar Chelsea Manning e os prisioneiros de Guantánamo.
Os norte-americanos perseguem Assange porque o WikiLeaks expôs seus
crimes épicos no Afeganistão e no Iraque: as mortes de dezenas de
milhares de civis, que eles esconderam; e seu desprezo pela soberania e
leis internacionais, como demonstrado, de forma brilhante, nos despachos
diplomáticos vazados. O WikLeaks continua a expor a atividade criminosa
dos EUA: acabou de publicar documentos altamente sigilosos
interceptados — relatórios de espiões estadunidenses detalhando
telefonemas privados dos presidentes da França e da Alemanha, e outros
altos funcionários, relativos a assuntos políticos e econômicos internos
da Europa.
Nada do que Assange fez é ilegal sob a Constituição dos EUA. Como
candidato à presidência em 2008, Barack Obama, um professor de direito
constitucional, louvou os denunciadores como “parte de uma democracia
saudável [e eles] precisam ser protegidos de represálias”. Já em 2012, a
campanha para reeleger Barack Obama presidente gabava-se em seu site de
ter perseguido mais denunciadores em seu primeiro mandato do que todos
os outros presidentes norte-americanos juntos. Antes mesmo que Chelsea
Manning tivesse ido a julgamento, Obama declarou-o culpado. Chelsea foi
depois sentenciada a 35 anos de prisão, tendo sido torturada durante sua
longa detenção antes de ser julgada.
Há poucas dúvidas de que, caso os EUA coloquem as mãos sobre Assange,
um destino semelhante o espera. Ameaças de prisão e assassinato de
Assange tornaram-se moeda corrente dos extremistas políticos nos EUA,
depois da calúnia absurda do vice-presidente Joe Biden, para quem o
fundador do WikiLeaks era um “cyber-terrorista”. Aqueles que duvidam do
grau de crueldade que Assange pode esperar deveriam lembrar-se do pouso
forçado imposto ao avião do presidente Evo Morales, da Bolívia em 2013,
porque os EUA supuseram erroneamente que ele transportava Edward
Snowden.
De acordo com documentos divulgados por Snowden, Assange figura numa
“lista de alvos de caçada humana”. As tentativas de Washington para
colocar as mãos sobre ele, dizem despachos diplomáticos australianos, é
“sem precedentes em escala e natureza”. Em Alexandria, Virginia, um júri
secreto passou cinco anos tentando achar um crime pelo qual Assange
possa ser processado. Não é fácil. A Primeira Emenda da Constituição dos
Estados Unidos protege editores, jornalistas e denunciantes.
Frente a esse obstáculo constitucional, o Departamento de Justiça dos
EUA tramou acusações de “espionagem”, “conspiração para cometer
espionagem”, “conversão” (roubo de propriedade do governo), “fraude e
abuso de informática” (pirataria informática) e “conspiração” em geral. A
Lei de Espionagem prevê prisão perpétua e pena de morte.
A possibilidade de Assange defender-se nesse mundo kafkiano foi
prejudicada pelo fato de os EUA declararem seu caso segredo de Estado.
Em março, um tribunal federal de Washington bloqueou a divulgação de
qualquer informação sobre a investigação de “segurança nacional” contra o
WikiLeaks, porque ela estava “ativa e em curso” e seria prejudicada a
“acusação pendente” contra Assange. A juiza, Barbara J. Rosthstein,
disse que era necessário mostrar “deferência apropriada ao Executivo em
matéria de segurança nacional”. Tal é a “justiça” de um tribunal de
fachada.
O papel de apoio nessa farsa sinistra está na Suécia, e é
interpretado pela procuradora Marianne Ny. Até recentemente, Ny
recusou-se a cumprir um procedimento europeu de rotina, que exigia que
ela viajasse a Londres para interrogar Assange e fazer o caso avançar.
Durante quatro anos e meio, Ny nunca explicou de forma convincente por
que razão recusou-se a ir para Londres; e as autoridades suecas nunca
explicaram por que se recusaram a dar a Assange garantias de que não
iriam extraditá-lo para os EUA sob um acordo secreto firmado entre
Estocolmo e Washington. Em dezembro de 2010, o jornal britânico The Independent revelou que os dois governos haviam discutido sua futura extradição para os EUA.
Contrariamente à sua reputação de bastião em defesa das liberdades,
nos anos 1960, a Suécia aproximou-se tanto Washington que permitiu as
prisões secretas executadas pela CIA e a deportação ilegal de
refugiados. A prisão e subsequente tortura de dois refugiados políticos
egípcios em 2001 foi condenada pela Comitê contra a Tortura da ONU, a
Anistia Internacional e o Human Rights Watch; a cumplicidade do Estado
sueco está documentada em processo civil bem sucedido e em despachos
vazados pelo WikiLeaks. No verão de 2010, Assange tinha voado para a
Suécia para falar sobre revelações do WikiLeaks relativas à guerra no
Afeganistão – em que a Suécia tinha soldados sob comando dos EUA.
“Documentos divulgados pelo WikiLeaks depois que Assange mudou-se
para a Inglaterra”, escrever Al Burke, editor da versão online do Nordic News Network, um
estudioso dos múltiplos riscos que Assange enfrenta, “indicam
claramente que a Suécia é submetida consistentemente a pressão dos
Estados Unidos, em assuntos relativos a direitos civis. Existem todas as
razões para temer que, se Assange fosse mantido sob custódia pela
autoridades suecas, ele poderá ser transferido para os Estados Unidos
sem a devida consideração de seus direitos legais.”
Por que razão a promotora pública sueca não resolveu o caso de
Assange? Muitos na comunidade jurídica da Suécia acreditam que seu
comportamento é inexplicável. Antes implacavelmente hostil a Assange, a
imprensa sueca já chegou a publicar manchetes tais como: “Vá para
Londres, pelo amor de Deus.”
Por que ela não foi? Mais precisamente, por que ela não permite o
acesso do tribunal sueco a centenas de mensagens de SMS que a polícia
extraiu do telefone de uma das duas mulheres envolvidas nas alegações de
má conduta sexual? Por que ela não as passou aos advogados suecos de
Assange? Ela diz que não está legalmente obrigada a fazê-lo até que uma
acusação formal seja lançada e ela tenha interrogado o acusado. Mas
então, por que ela não o interroga? E se ela o fizesse, as condições que
iria exigir dele e de seus advogados – que não pudessem desafiá-la –
tornariam a injustiça que comete uma quase certeza.
Por uma questão processual, o Supremo Tribunal da Suécia decidiu que
Ny pode continuar a obstruir a divulgação crucial das mensagens de SMS. O
tema vai agora para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. O que Ny
teme é que as mensagens SMS destruam sua acusação contra Assange. Uma
das mensagens deixa claro que uma das mulheres não queria qualquer fazer
qualquer queixa contra o fundador do Wikileaks, “mas a polícia estava
ansiosa para colocar as mãos nele”. Ela ficou “chocada” quando eles o
prenderam só porque ela “queria que ele fizesse um teste [HIV].” Ela
“não quis acusar JA de nada” e “foi a polícia que inventou as
acusações”. (No depoimento de uma testemunha, ela é citada ao dizer que
tinha sido “atropelada pela polícia e outros ao seu redor.”)
O Caso
Nenhuma das mulheres alegou ter sido estuprada. De fato, ambas
negaram ter sido estupradas e uma delas chegou a tuitar que “não fui
estuprada”. É evidente que foram manipuladas pela polícia e seus desejos
ignorados – seja o que for que seus advogados possam dizer agora.
Certamente são vítimas de uma história que atinge a própria reputação da
Suécia.
O único julgamento a que Assange teve “direito” foi o da mídia. Em 20
de agosto de 2010, a polícia sueca abriu uma “investigação de estupro”.
Informou de imediato – e ilegalmente – aos tabloides de Estocolmo que
havia uma autorização para Assange ser preso pelo “estupro de duas
mulheres”. Essa foi a notícia que rodou o mundo.
Em Washington, o secretário de Defesa, Robert Gates, disse sorridente
aos repórteres que a prisão “soa como boa noticia para mim”. Contas de
tuiter associadas ao Pentágono descreveram Assange como “estuprador” e
“fugitivo”.
Menos de 24 horas depois, a procuradora geral de Estocolmo, Eva
Finne, assumiu a investigação. Ela não demorou a cancelar o pedido de
prisão, dizendo, “Não acredito que haja nenhuma razão para suspeitar que
ele cometeu um estupro.” Quatro dias depois, encerrou todo o inquérito,
dizendo: “Não há suspeita de crime algum”. O processo foi arquivado.
Entra Claes Borgstrom, um político de alto nível do Partido Social
Democrata candidato às então iminentes eleições gerais suecas. Depois de
dias da demissão da procuradora geral do caso, Borgstrom, um advogado,
anunciou à mídia que estava representando as duas mulheres e obteve a
nomeação de uma nova promotora, na cidade de Gothenberg. Era Marianne
Ny, bem conhecida de Borgstrom, pessoal e politicamente.
Em 30 de agosto, Assange apresentou-se voluntariamente numa delegacia
de política em Estocolmo e respondeu a todas as perguntas que lhe foram
feitas. Entendeu que aquilo liquidava o assunto. Dois dias depois, Ny
anunciou que estava reabrindo o caso. Um repórter sueco perguntou a
Claes Borgstrom por que razão o caso estava prosseguindo, quando já
havia sido arquivado, citando uma das mulheres que disse não ter sido
estuprada. Ele respondeu: “Ah, mas ela não é uma advogada.” O advogado
australiano de Assange, James Catlin, zombou, “Isso é um caso hilário… é
como se fossem inventando no decorrer da história.”
No dia em que Marianne Ny reabriu o caso, o chefe do serviço de
inteligência militar da Suécia – que tem como acrônimo MUST – denunciou
publicamente o WikiLeaks num artigo intitulado “WikiLeaks [é] uma ameaça
para nossos soldados.” Assange foi avisado que o serviço de
inteligência sueco, SAPO, havia sido avisado por seus pares dos EUA de
que os acordos de inteligência partilhados pelos EUA e Suécia seriam
“cortados” se a Suécia lhe desse abrigo.
Durante cinco semanas, Assange aguardou na Suécia que a nova investigação seguisse seu curso. The Guardian
estava prestes a publicar os “Registros de Guerra” do Iraque, com base
nas revelações do WikiLeaks – uma publicação que Assange deveria
supervisionar. Seu advogado em Estocolmo perguntou a Ny se ela tinha
alguma objeção a que ele deixasse o país. Ela disse que Assange estava
livre para partir.
Inexplicavelmente, assim que ele deixou a Suécia – no auge do
interesse da mídia e do público com as revelações do WikiLeaks – Ny
emitiu um mandado de prisão europeu e um “alerta vermelho” da Interpol,
normalmente utilizado contra terroristas e criminosos perigosos.
Difundido em todo o mundo, em cinco idiomas, o documento garantiu um
frenesi da mídia.
Assange compareceu a uma delegacia de polícia em Londres, foi preso e
passou dez dias na prisão de Wandsworth, confinado numa solitária.
Libertado sob uma fiança de 340 mil libras esterlinas (cerca de R$ 1,85
milhão), foi marcado eletronicamente, obrigado a se comunicar com a
polícia todos os dias e colocado sob prisão domiciliar, enquanto seu
caso começava uma longa jornada até o Supremo Tribunal. Ele ainda não
havia sido acusado de nenhuma infração. Seus advogados repetiram a
proposta de ser interrogado por Ny em Londres, ressaltando que ela havia
lhe dado permissão para ele deixar a Suécia. Sugeriram um mecanismo
especial comumente usado na Scotland Yard para esse fim. Ela se recusou.
Katrin Axelsson e Lisa Longstaff, da organização internancional Women
Against Rape (Mulheres contra o Estupro), escreveram: “As alegações
contra [Assange] são uma cortina de fumaça atrás da qual alguns governos
estão tentando abater o WikiLeaks por ter revelado, de forma audaciosa,
seus planos secretos de guerras e ocupações com seus estupros,
assassinatos e destruição… As autoridades ligam tão pouco para a
violência contra as mulheres que manipulam alegações de estupro à
vontade. [Assange] já deixou claro que está disponível para ser
interrogado pelas autoridades suecas, na Grã-Bretanha ou via Skype. Por
que eles estão se recusando essa medida essencial na sua investigação?
De que têm medo?”
Essa pergunta continuou sem resposta à medida em que Ny recorria ao
Mandado de Detenção Europeu (EAW, em inglês), um produto draconiano e
hoje desacreditado da “guerra ao terror”, supostamente criado para
capturar terroristas e o crime organizado. O EAW desobrigou os Estado
que pedem detenção de apresentar qualquer prova de crime. Mais de mil
EAWs são emitidos a cada mês; poucos têm a ver com potenciais acusações
de “terror”. A maioria é emitida para delitos triviais, tais como multas
e encargos bancários em atraso. Muitos dos extraditados enfrentam meses
de prisão sem acusação. Tem havido um número de chocantes erros
judiciais, de que os juízes britânicos têm sido profundamente críticos.