A história da perseguição kafkiana a Julian Assange, criador do Wikileaks. Questão crucial: como Washington poderá mantê-lo aprisionado após 20/8, quando prescrevem seus “crimes”?
Por John Pilger | Tradução: Inês Castilho
em http://outraspalavras.net (excelente site)
O
caso Assange chegou à Suprema Corte do Reino Unido, finalmente, em maio
de 2012. Num julgamento que acolheu o mandato de detenção europeu (EAW,
European Arrest Warrant) – cujas rígidas exigências não deixaram quase
nenhuma margem de manobra aos tribunais – os juízes acharam que os
procuradores europeus podiam emitir mandatos de extradição no Reino
Unido, sem qualquer supervisão judicial, apesar de o Parlamento
pretender o contrário. Eles deixaram claro que o Parlamento havia sido
“enganado” pelo governo Blair. O tribunal ficou dividido, 5 a 2, e
decidiu contra Assange.
Contudo, o
presidente da Suprema Corte, Lord Phillips, cometeu um erro. Ele aplicou
a Convenção de Viena na interpretação de tratados, permitindo que o
Estado ignorasse a letra da lei. Como apontou a advogada de Assange,
Dinah Rose QC, isso não se aplica ao EAW.
A Corte Suprema
reconheceu esse erro crucial somente quando teve de lidar com outra
apelação contra o mandato, em novembro de 2013. A decisão sobre Assange
estava errada, mas era tarde demais para retroceder. Com a iminência da
extradição, o procurador sueco disse aos advogados de Assange que este,
uma vez na Suécia, seria imediatamente levado a uma das infames prisões
preventivas da Suécia.
Era difícil a
escolha de Assange: extradição para um país que se recusou a dizer se ia
ou não enviá-lo para os EUA; ou ir atrás do que parecia ser sua última
oportunidade de refúgio e segurança. Apoiado pela maioria dos países da
América Latina, o corajoso governo do Equador concedeu ao criador do
Wikileaks o status de refugiado, com base em provas documentais e
aconselhamento jurídico de que ele enfrentava perspectiva de punição
cruel e incomum nos EUA; de que essa ameaça violava seus direitos
humanos básicos; e de que próprio governo dele, a Austrália, o havia
abandonado e era conivente com Washington. A primeira-ministra
trabalhista australiana, Julia Gillard, havia até mesmo ameaçado deter
seu passaporte.
Gareth Peirce, a
renomada advogada de direitos humanos que representa Assange em
Londres, escreveu ao então ministro do exterior australiano, Kevin Rudd:
“Dado o alcance do debate público, frequentemente baseado em
pressupostos inteiramente falsos … é muito difícil tentar preservar para
Assange qualquer presunção de inocência. Assange tem agora sobre sua
cabeça não uma, mas duas espadas de Dâmocles, de potencial extradição
para duas jurisdições diferentes por causa de dois supostos crimes,
nenhum dos quais são crimes em seu próprio país, e sua segurança pessoal
está em risco em circunstâncias altamente carregadas de teor político.”
Somente quando contatou o Alto Comissariado Australiano em
Londres, Peirce recebeu uma resposta – que não replicava nenhum dos
pontos levantados. Numa reunião a que compareci com ela, o cônsul geral
australiano, Ken Pascoe, fez a espantosa afirmação de que sabia “apenas o
que leio nos jornais” sobre os detalhes do caso.
Enquanto
isso, a perspectiva de um erro judiciário grotesco ficou submersa numa
campanha injuriosa contra o fundador do WikiLeaks. Profundamente
pessoal, mesquinha, com ataques cruéis e desumanos dirigidos a um homem
não acusado de qualquer crime, e ainda assim submetido ao mesmo
tratamento de um réu que enfrenta extradição acusado de assassinar sua
esposa. O fato de que a ameaça sofrida por Assange significava uma
ameaça a todos os jornalistas, à liberdade de expressão, ficou esquecido
em meio à sordidez e ambição.
Publicaram-se livros, negociaram-se filmes, carreiras na mídia foram alavancadas às custas do WikiLeaks,
com a suposição de que atacar Assange era um jogo justo e ele era pobre
demais para processá-los. As pessoas ganharam dinheiro, muito dinheiro,
enquanto o WikiLeaks lutava para sobreviver. O editor do The Guardian,
Alan Rusbridger, considerou as revelações do WikiLeaks, que seu jornal
publicou, “um dos maiores furos jornalísticos dos últimos 30 anos”. A
publicação tornou-se parte de seu plano de marketing para aumentar o
preço de capa do jornal.
Sem que um centavo sequer fosse para Assange ou para o WikiLeaks, um badalado livro do Guardian conduziu
a um lucrativo filme de Hollywood. Os autores do livro, Luke Harding e
David Leigh, descreveram Assange, gratuitamente, como uma “personalidade
destruída” e “cruel”. Eles também revelaram a senha secreta que Assange
havia dado em confiança ao jornal, destinada a proteger um arquivo
digital com os telegramas da embaixada dos EUA. Com Assange agora preso
na embaixada do Equador, Harding, postado do lado de fora, junto à
polícia, regozijou-se em seu blog dizendo que “a Scotland Yard deverá
rir por último.”
A
injustiça cometida contra Assange é uma das razões pelas quais o
Parlamento reformou, mais tarde, o Ato de Extradição (Extradition Act),
para prevenir o mau uso do mandato de detenção europeu. A perseguição
draconiana usada contra ele não poderia mais acontecer; acusações teriam
de ser feitas e “interrogatórios” seriam insuficientes como base para
extradição. “Seu caso foi encerrado, estocado e colocado num barril”,
disse-me Gareth Peirce, “essas mudanças na lei significam que o Reino
Unido agora reconhece como certo tudo o que foi argumentado em seu caso.
No entanto, isso não o beneficia.” Em outras palavras, a mudança na
legislação do Reino Unido, em 2014, significa que Assange teria ganho o
caso e não seria forçado a asilar-se.
A decisão do
Equador de proteger Assange em 2012 tornou-se um grande caso
internacional. Embora a garantia de asilo seja um ato humanitário, e o
poder de fazê-lo usufruído por todos os Estados sob a legislação
internacional, tanto a Suécia como o Reino Unido recusaram-se a
reconhecer a legitimidade da decisão do Equador. Ignorando a lei
internacional, o governo Cameron recusou-se a garantir para Assange uma
viagem segura até o Equador. Ao contrário, a embaixada equatoriana foi
cercada e seu governo sofreu abusos, com uma série de ultimatos. Quando o
ministro do Exterior, Willian Hague, ameaçou violar a Convenção de
Viena de Relações Diplomáticas, anunciando que iria remover a
inviolabilidade diplomática da embaixada e mandou a polícia prender
Assange, a indignação causada em todo o mundo forçou o governo a recuar.
Numa noite, a polícia apareceu na janela da embaixada em uma tentativa
óbvia de intimidar Assange e seus protetores.
Desde então,
Julian Assange tem vivido confinado num pequeno quarto sob a proteção do
Equador, sem tomar sol e sem espaço para se exercitar, cercado pela
polícia com ordem para prendê-lo. Durante três anos, o Equador deixou
claro à promotora pública sueca que Assange está disponível para ser
interrogado na embaixada de Londres, e por três anos ela se manteve
intransigente. Nesse período, a Suécia interrogou, no Reino Unido, 44
pessoas ligadas à investigações policiais. Seu papel, e o do Estado
sueco, é evidentemente político; e para a promotora Marianne Ny, que
cuida do caso e se aposentará em dois anos, é necessário “vencer”.
Desesperado,
Assange recorreu do mandato de prisão nos tribunais suecos. Seus
advogados citaram acórdãos do Tribunal Europeu de Direitos Humanos,
lembrando que ele esteve sob detenção arbitrária e indefinida, que já
foi virtualmente prisioneiro por mais tempo que qualquer pena efetiva
cabível em seu caso, ainda que fosse considerado culpado. O juiz do
Tribunal de Segunda Instância concordou com os advogados de Assange: a
promotora havia efetivamente violado o direito, ao manter o caso
suspenso durante anos. Outro juiz emitiu uma repreensão ao Ministério
Público. E ainda assim a promotora Ny desafiou o tribunal.
Em dezembro
passado, Assange levou seu caso à Suprema Corte sueca, que pediu
explicações ao chefe de Marianne Ny – o Promotor Geral da Suécia, Anders
Perklev. No dia seguinte Ny anunciou, sem explicações, que havia mudado
de ideia e iria interrogar Assange em Londres.
Em sua
apresentação à Suprema Corte, o procurador geral fez algumas concessões
importantes: argumentou que a coerção de Assange havia sido “intrusiva” e
que o período na embaixada foi de “grande pressão” sobre ele. Admitiu
inclusive que, se o processo tivesse algum dia ido para acusação,
julgamento, e cumprimento de sentença na Suécia, Julian Assange já teria
deixado a prisão há muito tempo.
Numa decisão
dividida, um juiz da Corte Suprema argumentou que o mandato de prisão
deveria ter sido revogado. A maioria dos juízes resolveu que, já que a
promotora disse que iria agora para Londres, os argumentos de Assange
haviam se tornado “consideráveis”. Mas o Tribunal de Justiça decidiu
que, se ela não tivesse mudado de ideia de repente, teria se pronunciado
contra a procuradora. Justiça por capricho. Em artigo publicado na
imprensa sueca, um antigo procurador sueco, Rolf Hillegren, acusou Ny de
perder toda e qualquer imparcialidade. Ele descreveu como “anormal” sua
manutenção no caso e exigiu que ela fosse substituída.
Tendo dito que
iria para Londres em junho, Ny não foi, mas enviou um representante,
sabendo que o interrogatório não seria legal nessas circunstâncias,
especialmente porque a Suécia não se dignou pedir ao Equador que
marcasse o encontro. Ao mesmo tempo, seu escritório avisou o tabloide
sueco Expressen,
que mandou seu correspondente em Londres ficar esperando “notícias” no
lado de fora da embaixada do Equador. A notícia foi que Ny estava
cancelando o compromisso e culpava o Equador pela confusão; e ainda,
implicitamente, que Assange era “não cooperativo” – quando a verdade era
justamente o oposto.
À medida em que
se aproxima a data de prescrição dos “crimes” atribuídos a Assange – 20
de agosto de 2015 – vai ter início, certamente, outro capítulo desta
história horrenda. Marianne Ny tentará tirar mais um coelho da cartola,
para beneficiar o os comissários e procuradores em Washington. Talvez
nada disto seja surpreendente. Em 2008, uma guerra contra o WikiLeaks e
Julian Assange foi prevista num documento secreto do Pentágono preparado
pelo “Setor de Avaliação de Cyber-contrainteligência”. Ele descreve um
plano detalhado para destruir o sentimento de “confiança”, que é o
‘”centro de gravidade” do WikiLeaks. Isto poderia ser conseguido com
ameaças de “exposição [e] processo criminal”.
O objetivo era silenciar e
criminalizar essa rara fonte de informação verdadeira no jornalismo
contemporâneo, difamando seu método. Enquanto esse escândalo continua, a
própria noção de justiça fica reduzida, juntamente com a reputação da
Suécia, e a sombra da ameaça dos Estados Unidos da América paira sobre
todos nós.
–
Para importante informação adicional, acesse os seguintes links:
http://justice4assange.com/extraditing-assange.html
http://www.independent.co.uk/news/uk/crime/assange-could-face-espionage-trial-in-us-2154107.html
https://www.youtube.com/watch?v=1ImXe_EQhUI
https://justice4assange.com/Timeline.html
http://pdfserver.amlaw.com/nlj/wikileaks_doj_05192014.pdf
https://wikileaks.org/59-International-Organizations.html
https://s3.amazonaws.com/s3.documentcloud.org/documents/1202703/doj-letter-re-wikileaks-6-19-14.pdf
http://www.theguardian.com/media/2015/jul/23/julian-assange-ecuador-and-sweden-in-tense-standoff-over-interview?CMP=twt_gu
http://assangeinsweden.com/2015/03/17/the-prosecutor-in-the-assange-case-should-be-replaced
https://justice4assange.com/Prosecutor-cancels-Assange-meeting.html