Hanady Alkhatib, jornalista síria que foi obrigada a abandonar a
Síria por temer represálias do regime de Assad, vivendo atualmente no
Dubai, escreveu um texto em abril do ano passado em que fala sobre a dor
de perder tudo - de perder o filho, o marido, o pai, a mãe.
Sobre a dor
de ter de identificar os restos mortais dos homens da sua família,
assassinados por terroristas ou pelo regime, não menos terrorista do que
os terroristas.
Sobre a dor de viver em permanente estado de culpa,
sentindo-se permanentemente culpada por estar viva. Sobre a dor de viver
enquanto muitos estão a morrer. Sobre a dor, crónica, de ser síria nos
dias que correm.
A minha identificação? Sou uma mulher síria
O mundo vira-me as costas pela enésima vez. Sou a
mulher síria que teve de identificar o seu irmão através de uma série
de fotografias tiradas à socapa do matadouro de Assad. Entrei em
contacto muitas vezes com a Rede Síria para os Direitos Humanos [SNHR na
sigla em inglês] para saber se tinham informações sobre o meu irmão,
mas a resposta que me davam era sempre a mesma. “Não temos novidades”. O
meu coração parecia sufocar de cada vez que ligava para lá. Ontem,
enviei-lhes uma fotografia pelo telemóvel daquilo que em tempos fora um
ser humano. “Este é o meu irmão”, escrevi.
Vem-me novamente à
cabeça o relatório Caesar [nome por que também é conhecido o documento
divulgado em 2014 pelo “Guardian” sobre o assassínio de mais de 11 mil
prisioneiros sírios pelo regime entre março de 2011 e agosto de 2013] e
as 55 mil imagens de pessoas mortas e torturadas nos calabouços de
Assad. Este relatório veio denunciar aquele que é o maior escândalo da
Síria do séc. XXI, e estilhaçar os corações de mais de 11 mil mães que
ainda esperavam vislumbrar uma réstia de luz ao fundo de um interminável
túnel. Aquelas fotografias não são para nós apenas uma manchete nos
jornais. Aqueles rostos são-nos familiares. São os rostos de 11 mil
homens, 11 mil seres humanos. Ou melhor, são os restos de pessoas que
nós conhecíamos, que viveram entre nós. Mas, cuidado. É preciso suster a
respiração antes de ver as imagens. É preciso estar preparado para a
viagem de horror e sofrimento que aí vem. Uma viagem em que lamentar não
chega. Uma viagem em que a raiva e a revolta são tão ensurdecedoras que
não se consegue ouvir nada a não ser os gritos desses restos humanos.
Sou uma mulher síria. O meu irmão, que eu não via há três anos a não
ser através do ecrã do computador, enviou-me um email com duas
fotografias e perguntou-me - “Por favor, diz-me… Reconhece-lo? É ele na
fotografia? Não consigo acreditar que seja ele!” Os meus olhos
encheram-se de lágrimas e o meu coração morreu por dentro. Quando recebi
o email dele apeteceu-me gritar - “Porque é que me pediste para te
ajudar?”. “Meu querido irmão, lamento, mas é de facto ele”, disse-lhe. A
mãe desse amigo morreu quando viu as fotografias do filho. Deus
escolheu-a. Deus quis libertá-la do sofrimento e da dor. Libertá-la de
uma longa espera.
Sou uma mulher síria. No dia em que a minha tia
morreu, virei-me para a minha mãe e disse: “Pelo menos morreu deitada
na sua cama. Temos de a enterrar rapidamente”. Não queria ter de
enfrentar o seu olhar de espanto e inquietação. O que era suposto eu
dizer-lhe? Apresentar-lhe as minhas mais profundas condolências? Deixei
cair a cabeça no seu colo e chorei. “Mãe, houve muitas pessoas que
tiveram de identificar as suas crianças no meio de muitas outras. A tia
morreu enquanto estava connosco, ao menos sabemos como e onde. Por
favor, podes ao menos chorar por todos os jovens sírios que também
morreram?”, gritei-lhe.
Sou uma mulher síria. “Acusam-me de estar
do lado do Estado Islâmico só porque tenho um passaporte azul. Eles
parecem esquecer-se que fui obrigada a identificar os restos mortais do
meu irmão através de uma série de fotografias numeradas online. Eles
parecem esquecer-se que tenho a visão turva de tanto chorar pela minha
mãe”. Nos aeroportos, as pessoas dirigem-me olhares desconfortáveis,
cheios de dúvidas. O mais provável é que me digam para me afastar um
pouco e deixar que todos os outros passageiros passem primeiro. Esses
passageiros que não sabem o que é chorar pelos seus entes queridos e ser
acusado de estar do lado do Estado Islâmico - esses passageiros que não
têm familiares que desapareceram nessa casa de horror do Presidente
Assad a que nós chamamos Síria.
Sou uma mulher síria, forçada a sorrir.
Espero em longas, longas filas, por um pedaço de pão, e desejo que a
minha mãe parta antes de ver o que eu tenho visto. Não vale a pena
repetir - “Não é o teu filho. Não é o teu filho”. As mães percebem logo
se é ou não. As mães sabem quem trouxeram ao mundo. Elas sabem,
simplesmente.
Sou uma mulher síria que se sente estranha quando
um colega simpático a cumprimenta no trabalho, surpreendida com um gesto
tão amigável no meio de tanta dor. Uma amiga minha libanesa diz-me uma
piada, tentando desesperadamente arrancar-me um sorriso, mas eu fujo
dela, fujo do mundo. Não consigo deixar de pensar naquelas fotografias -
elas são o tesmunho de que está em curso um novo Holocausto. Não
consigo escapar à revolta e à tristeza.
Sou uma mulher síria que
vive em permanente estado de culpa, sentindo-se permanentemente culpada
por estar viva. Sou uma mulher síria que acorda com o bater do coração,
que treme ao ver as notícias, que espera ansiosamente que a irmã, a
viver em Damasco, atenda o telefone, e que fica aliviada por saber que
ela ainda está viva, embora odeie esse sentimento, porque no mesmo dia
outra irmã de outro sírio morreu, vítima de Assad.
Sou uma mulher
síria, do país que os líderes mundiais escolheram para seu campo de
batalha contra o Estado Islâmico, permitindo que Assad continuasse no
seu trono. Ouço o que dizem os Estados Unidos e a Europa, o que diz o
mundo inteiro, e enfurece-me tamanha hipocrisia. “Nós não reconhecemos a
legitimidade do regime sírio”, dizem, mas não fazem nada em relação a
isso. Pelo contrário, enchem os terroristas de armas e dinheiro e depois
lutam contra eles por cima de mim, lá do céu. É claro que os media
ocidentais simpatizam comigo. Mas eu acabo por ficar sempre sozinha, a
sofrer ainda mais e a morrer ainda mais às mãos do Estado Islâmico e do
regime de Assad. Esquecem-se de mim outra vez, e outra vez, como se
tivessem decidido punir-me por eu querer respirar e viver.
Sou
uma mulher síria. Não sou o Estado Islâmico ou Assad. O regime tirou-me o
meu país e matou-me. O Estado Islâmico fez de mim sua escrava e fez de
mim orfã. Eu fugi aos dois, mas afoguei-me no mar. Eu fugi aos dois, mas
morri de calor, morri de frio, morri de doença e morri de fome, numa
tenda de refugiados. Sou uma mulher síria. Tive de identificar os restos
do meu filho, do meu irmão, do meu pai e do meu marido entre uma pilha
de fotografias. Sou a mulher que continua a ser rejeitada pelo mundo
inteiro, outra vez, e outra vez.
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Hanady Alkhatib, 40 anos,
nasceu em Damasco, na Síria, onde viveu até 2012. Jornalista na estação
televisiva Al-Arabiya, acompanhou a revolução síria desde que se fizeram
ouvir os primeiros protestos contra o regime do Presidente sírio Bashar
Al-Assad, em Dara, no sudoeste do país, estendendo-se depois a outras
cidades. Hanady Alkhatib terá sido, aliás, uma das primeiras pessoas a
escrever sobre o conflito.
Embora assinasse os artigos
com um nome falso (Jafra Bahaa), mais para proteger a família do que a
si mesma, a jornalista síria nunca escondeu a sua opinião em relação ao
regime de Assad. No trabalho, todos sabiam o que ela pensava sobre o
assunto. Por isso, não tardou muito a perceber que estava a ser
investigada pelos serviços secretos sírios. Naquele primeiro ano de
revolução, em que a repressão e brutalidade da polícia tiveram o efeito
contrário ao pretendido, intensificando a contestação e a violências nas
ruas, quem falasse contra o regime era detido. Hanady Alkhatib vivia
com a filha e começou a recear que acontecesse alguma coisa às duas. De
todos os cenários possíveis, o que mais temia era ser presa. “Para uma
mulher síria, a prisão é bem pior do que a morte, por causa da tortura e
das violações”. Decidiu, portanto, que o melhor seria deixar o país.
Partiu em 2012 para o Dubai, onde está sediada a Al-Arabiya (é lá que
vive atualmente).
Dois anos depois, em 2014, foi
ameaçada mais do que uma vez por combatentes do autoproclamado Estado
Islâmico (Daesh), que entretanto já dominava uma vasta faixa territorial
entre a Síria e o Iraque. Isso não a impediu, contudo, de continuar a
fazer o seu trabalho, ou “dever”, como lhe chama. “Continuo a fazer o
meu dever, que é o de contar a verdadeira história do meu povo”, diz
Hanady Alkhatib, em conversa com o Expresso. Perguntamos-lhe qual é a
“verdadeira história” e ela diz-nos que, na sua opinião, os media
ocidentais têm estado mais interessados no Daesh do que no regime de
Assad e nos crimes cometido por ele. “Não está a ser contada a história
toda às pessoas”.
Em abril do ano passado, Hanady
Alkhatib escreveu um texto, intitulado “A minha identificação? Sou uma
mulher síria”, em que fala sobre a dor de perder tudo - de perder o
filho, o marido, o pai, a mãe. Sobre a dor de ter de identificar os
restos mortais dos homens da sua família, assassinados por terroristas
ou pelo regime, não menos terrorista do que os terroristas. Sobre a dor
de viver em permanente estado de culpa, sentindo-se permanentemente
culpada por estar viva. Sobre a dor de viver enquanto muitos estão a
morrer. Sobre a dor, crónica, de ser síria, tendo em conta o tempo em
que vivemos nos dias que correm.
Retirado do Jornal Expresso, com anotações de Helena Bento