Se queremos salvar a democracia no século XXI, o problema do dinheiro
anónimo, escondido, fugido e protegido algures é objectivamente mais
dissolvente do que os tiros de uma Kalashnikov nas ruas de Bruxelas.
Nas suas declarações sobre as revelações (mais confirmações do que
revelações), dos chamados “Documentos do Panamá”, Marcelo Rebelo de Sousa
foi ao âmago da questão quando disse que o problema dos offshores era um problema de democracia. E é.
Os offshores
são, antes de tudo, do crime, da lavagem de dinheiro, da fuga ao fisco,
uma questão que significa para as democracias a perda de um princípio
básico — o de que o poder político legitimado pelo voto e pelo primado
da lei se sobrepõe ao poder económico. Por isso, tratar a questão dos offshores apenas como sendo de natureza fiscal e andar às voltas por aí é já um mau ponto de partida.
A questão que muitas vezes é iludida é que não existe uma única razão económica sólida para que hajam offshores.
Para que é que eles servem para a economia, para a produção, para o
emprego, para a indústria, para o comércio, para o investimento limpo?
Nada. Tudo aquilo para que os offshores servem é para esconder
dinheiro e os seus proprietários, para esconder a origem do
dinheiro, através de um conjunto de fachadas anónimas que depois vão
desaguar aos grandes bancos sediados na Suíça ou em Londres.
O que
os políticos europeus dizem, quando confrontados com esta realidade, ou
com os escândalos periódicos, como o actual com os documentos da
Mossack Fonseca, é que não podem fazer nada e que o que podem fazer
fazem. Por detrás desta declaração de impotência — eu estou a falar de
políticos democráticos — está o retrato da captura ocorrida nas últimas
décadas, e agravada pela crise de 2008, da política em democracia pelos
interesses financeiros globais, pela banca, pelos “mercados”. Sim,
porque uma das faces semivisíveis dos offshores são os biliões
que circulam em fundos e outros tipo de operações financeiras e
bancárias, a que nós chamamos os “mercados”, o Deus ex machina que faz mover os países como marionetas.
Podem
fazer alguma coisa? Podem fazer tudo. Repito: podem fazer tudo. E
acrescento: mas não querem. Podem fazer tudo, mas não querem — esta é a
frase que melhor resume o “problema para a democracia”. E não querem por
dois motivos. Um de fraqueza política, — a maioria dos políticos
europeus são gente frágil à frente de países fragilizados, uma
combinação de que resulta uma imensa fraqueza para lidar com interesses
poderosos, como são os que estão por detrás e pela frente dos offshores.
O outro é a hegemonia nos partidos de direita, e em muitos socialistas
subservientes, de uma mistura entre ideias sobre a economia, sobre o
Estado, sobre as empresas, sobre a governação dos países, que
corresponde ao “pensamento único” que tem presidido à política da
Comissão Europeia, do Eurogrupo, aos partidos do PPE, e que tem levado a
cabo a política de Schäuble e dos alemães e de alguns outros países
seus aliados.
Esta segunda razão é do “podem, mas acham bem”, e essa aparece como de costume nos mais rudimentares defensores dos offshores
que pululam na nossa direita mais radical, nos jornais, nos blogues e
nas redes sociais. Eles são reveladores, porque têm a imprudência de
dizer aquilo que os de cima da cadeia alimentar pensam, mas não podem
dizer. E todos ficaram imensamente incomodados com os “Documentos do
Panamá”, porque é “deles” e dos seus que os “documentos” falam. E
correram logo a dizer que era uma questão com Putin e não com o
capitalismo. Ou seja, os offshores são mais uma perversão do
comunismo e do socialismo e dos “oligarcas”, como gostam de chamar aos
poderosos do “outro lado”. E então é ler como os offshores são
uma resposta à tirania fiscal dos Estados “socialistas”, ou uma digna
resposta da liberdade económica do dinheiro e das empresas para fluir
para todo o lado sem barreiras. Sem dúvida, admitem, que há crimes e
lavagem de dinheiro, mas são pechas menores dos offshores. O
essencial é que eles são mais uma manifestação normal da liberdade
económica e da luta contra a prepotência dos Estados e das políticas
“socialistas” dos altos impostos. Isto vem de quem fez o “enorme aumento
de impostos”, retirou aos contribuintes qualquer protecção face aos
abusos do fisco e só é “liberal” na bandeirinha da lapela. Pobre da “mão
invisível” que foi possuída pela família Adams.
Também nos offshores
se verifica a escassíssima vontade dos políticos europeus, que tem à
sua cabeça institucional o senhor Juncker, que tem no seu currículo ter
feito enquanto primeiro--ministro do Luxemburgo todo o tipo de acordos
ilegais, insisto, ilegais, à luz das regras europeias, destinadas a
levar para o seu país empresas que aí encontravam um paraíso fiscal
protegidas pelo segredo de Estado. Ou no caso do Reino Unido, em que
dezenas de offshores estão em territórios sob soberania britânica.
O
problema como sempre é o dos alvos e dos intocáveis. Ou melhor:
defender por todos os meios os “intocáveis” de serem tocados e impedir
que os alvos deixem de ser alvos. O objectivo da política do
“ajustamento”, policiada pelas instituições europeias sem estatuto
democrático como o Eurogrupo, ou pelo FMI, em consonância com os
“mercados”, foi proteger o sistema bancário, os “mercados”, o dinheiro
que “flui” e, sem o dizer, no mesmo pacote vão os offshores
“contra os quais nada se pode fazer”. E o melhor atestado de ineficácia
da múltipla legislação europeia tão gabada nas suas intenções de dar
“transparência” ao sistema financeiro e combater a corrupção é o que
revelam estes “Documentos do Panamá” e muitas outras estimativas sérias:
o dinheiro que vai para os offshores é cada vez mais. Ponto.
A solução da questão dos offshores
é simples, se tivermos vontade para a aplicar. E desconfiem de quem
venha com muitas complexidades e complicações, é sempre mau sinal.
Insisto, não é muito complicado: trata-se de comparar o dinheiro dos offshores
com o dinheiro dos terroristas. Um rouba, em grande escala, Estados e
povos, o outro mata. Um mata à fome em África, outro nas ruas de Paris
ou em Nova Iorque. Um destrói economias, poupanças, classes médias
criadas com muitos anos e esforços para progredir, outro escraviza povos
e reduz a ruínas países já muito pobres. É uma comparação que admito
ser excessiva, mas, se partirmos dela, talvez possamos compreender (ou
não) por que razão aquilo que se admite em termos de recursos de
investigação, penalizações duríssimas, confisco de bens do crime ou da
droga, ou da corrupção ou da fuga ao fisco, e se aplica ao dinheiro do
terrorismo, se pode aplicar ao dinheiro ilegal dos offshores. Ah! Já estou a ouvir em fundo: “Mas muito desse dinheiro é legal.” Ai é? Então, qual é o motivo por que em vez de estar inshore vai para os offshores?
Deixem-se
por isso de falsos espantos e falsas surpresas. Tudo o que está nos
“Documentos do Panamá” não é novidade para ninguém. Como não é novidade
para ninguém o discurso de “não se pode fazer nada”. Mas, se queremos
salvar a democracia no século XXI, o problema do dinheiro anónimo,
escondido, fugido e protegido algures numa caixa de correio humilde de
uma casa nas Ilhas Caimão, ou num cacifo acolchoado de um luxuoso
escritório de advogados no Panamá é objectivamente mais dissolvente do
que os tiros de uma Kalashnikov nas ruas de Bruxelas. Faz-nos pior,
porque os tiros são-nos exteriores, são do “inimigo”, e os biliões das
Ilhas Virgens são de dentro, dos “amigos”.