15/04/2016

Vamos falar do consumo de carne

"Fazer do veganismo uma "opção individual" torna a prática ainda mais nobre: enquanto todos os outros se entregam aos prazeres da carne, nós que nos abstemos estoicamente. Por consequência. É uma "filosofia de vida": que chique! É uma bela forma de angariar simpatia, eu admito. Mas não é honesto."

Muitas vezes veganos e vegetarianos não conseguem, com os seus amigos que comem carne, explicar o porquê de o serem. Umas vezes por não se conseguirem explicar, e outras por resistência de quem os ouve. Encontramos um excelente texto que adaptamos para português (pt), de Bruno Muller em vista-se.com.br, que temos a certeza que será útil para todos.

Bruno Muller explica neste artigo os seus porquês, assim como as dificuldades e resistências que encontra "do outro lado", abordando várias questões relativamente ao tema.

Pode ou não pode? - por Bruno Muller

Essa é uma discussão que frequentemente emerge quando o tema é veganismo: trata-se de uma lista de interditos ou de uma forma de abstinência? É como o leigo, na conversa, manifestar sua curiosidade através de uma lista de perguntas: “e mel, pode?”; “e lã, pode?”; “e leite, por que não pode?”.

Nós, veganos ficamos revoltadíssimos: dizemos que veganismo não é uma questão de “não pode”. Não é um enunciado de tabus alimentares, códigos de vestimenta ou mandamentos sentimentais. O veganismo, dizemos com orgulho, é uma questão de consciência, uma opção individual de não contribuir com a exploração, o sofrimento e a morte dos animais. Certo?

Errado!  O veganismo não é uma opção de vida. É um imperativo ético. Um dever. Se é um dever, é uma regra. Uma regra obrigatória. E obrigatória para todos. Senão, seria uma regra arbitrária e, consequentemente, sem sentido.Eu sei, eu sei. Vão dizer que é antipático, que é fanatismo, que é autoritário. O que eu posso eu responder?

É antipático? Eu entendo que comanda a boa regra de convivência (e de convencimento) que, seja na vida social, seja naquele tempo que doamos de nossa vida para divulgar nossas ideias, a simpatia é um preceito básico a ser seguido. Se abordamos uma pessoa com agressividade, ela se põe na defensiva e fica menos disposta a ouvir, refletir, entender e, quem sabe, se deixar convencer. Mas até onde podemos ir sem que a simpatia se transforme em condescendência? Aí reside a verdadeira arte da argumentação. 

Mas desconfio que haja algo mais obscuro nesse discurso. Fazer do veganismo uma "opção individual" torna a prática ainda mais nobre: enquanto todos os outros se entregam aos prazeres da carne, nós que nos abstemos estoicamente. Por consequência. É uma "filosofia de vida": que chique! É uma bela forma de angariar simpatia, eu admito. Mas não é honesto.

A verdade é que ser simpático nem sempre é uma qualidade. A simpatia pode ser também uma bela forma de não se comprometer: sob o manto do altruísmo e maturidade, ela pode esconder o egoísmo e o incontrolável desejo de ser aceito. Eu sei bem disso: eu me esforcei para ser simpático duranter 20 anos. E nunca consegui convencer uma só pessoa de que não devemos comer animais. Foi necessário uma boa dose de antipatia para conseguir despertar algumas consciências. Antipatia que cultivo com cuidado, desde então, inclusive vigiando meus impulsos à simpatia, impulsos a trocar honestidade por sociabilidade.

E a verdade é que, para ser “antipático”, não precisa ser antissocial. Nem ser agressivo. Muito menos apontar o dedo acusador. Basta convicção, bons argumentos e firmeza para não ceder ao relativismo. É tudo o que basta para te valer a alcunha de “antipático”. Que seja! Antes antipático que conivente. Hoje, antes de querer ser simpático, eu penso: quem não respeita minhas convicções não merece o meu respeito.
É fanatismo? Vamos pôr de outro modo: qualificarias uma pessoa que condena a escravidão humana de fanática? É fanático alguém que se recusa a admitir a pedofilia? É fanatismo não aceitar, sob hipótese alguma, que seres humanos sejam confinados em campos de trabalhos forçados, de onde só sairão mortos, sendo exterminados aqueles que sobreviverem à fome e às epidemias? Pois é… Então porque o súbito laivo de relativismo quando vemos animais submetidos às mesmas condições de “vida” (uma vida assim definida só pode ser um tipo de subvida)? Ah, porque as pessoas não olham o sofrimento animal da mesma maneira. Para elas é normal. Elas não refletem sobre as consequências de suas atitudes. É cultural: elas cresceram nessa cultura em que é normal explorar animais, e têm dificuldades em abrir mão ou sequer questionar seus hábitos arraigados. Mas aí está precisamente o problema! Os maiores crimes contra a humanidade só foram possíveis devido ao silêncio conivente da maioria. Não é este o papel que devemos assumir se acreditamos que animais têm direitos, e não estamos apenas a querer ser “alternativos”.

O fanatismo também levanta a questão dos tabus. Tabus são impedimentos que ninguém sabe a origem, nem são acompanhados de uma justificativa. O tabu do incesto é o exemplo mais evidente. Mas existem outros: tabus alimentares em certas religiões; tabus sexuais, além do incesto, que variam muito de acordo com as culturas. Se você perguntar “por quê?”, a resposta não será muito convincente: é feio; é a tradição; é o mandamento divino. Um tabu não precisa de justificativa porque ele não a possui. Não é o caso do veganismo: ele não é um tabu alimentar. Dizer que não se pode comer carne não significa que essa interdição não tem uma explicação lógica e racional que a justifique – e que deve ser apresentada no momento do debate. E isso faz toda a diferença, para sabermos distinguir entre o tabu e o imperativo ético, que é o que o veganismo é.
E o autoritarismo, a minha acusação predileta? Uma vez que tu não concordas que seres humanos sejam confinados em campos de extermínio, tu não podes chegar à praça pública e afirmar categoricamente que isso é errado? É errado tu fazeres tudo que está ao teu alcance para impedir essa prática? Não, não podemos transigir com a violência e a injustiça sob qualquer das suas formas. Isso não é apenas leviano, é igualmente e mais fundamentalmente imoral. Uma regra não é em si mesma autoritária. Ela o é quando é imposta com violência; quando é aplicada de forma arbitrária, isto é, desigual; ou quando não é acompanhada de uma justificativa razoável – não basta dizer “é por que é”, nem basta qualquer argumento: tem que ser um argumento razoável, ou seja, plausível, racional. E o argumento dos direitos dos animais é tão razoável quanto pode ser um argumento. Apesar da antipatia que isso gera no nosso mundo eivado de relativismo, eu digo sem medo: não existe argumento capaz de refutar a lógica e a ética por trás dos princípios dos direitos dos animais.
O consumo de produtos derivados de animais, ou testados em animais, viola uma regra moral fundamental, a do respeito à vida dos seres sencientes. Se essa regra não é reconhecida pela lei nem pelos costumes, isso não a torna inválida, nem torna a opinião predominante válida. Ou, como dizem alguns filósofos: 2 mais 2 é igual a 4, mesmo que a maioria não concorde.
É errado matar seres sencientes. Sendo errado, é uma regra moral. Se a maioria viola essa regra, isso não faz dela opcional. É um dever dos seres humanos respeitar a vida, a liberdade e a integridade dos demais animais. É uma imposição ética. Mesmo que a submissão a esta regra seja voluntária, do ponto de vista ético ela ainda é obrigatória. E o que nós lutamos é pelo dia em que ela não seja mais uma regra de adesão voluntária: lutamos pelo dia em que um ser humano não possa matar um animal, mesmo que ele não acredite no imperativo ético que o impede de fazê-lo. 


Da mesma forma que um ser humano não pode matar outro de sua espécie – e ninguém acha que esta regra é autoritária ou fruto de fanatismo. Por isso, se alguma pessoa me pergunta: “então não pode comer carne, leite, ovos, mel, nem usar couro, lã e seda, nem usar produtos testados em animais?”, eu respondo, resoluto: “É, não pode”. E sigo adiante, com a segurança dos meus argumentos.

adaptado do texto de Bruno Muller em vista-se.com.br