20/06/2016

Os escravos que constroem estádios para o Mundial do Qatar

Há coisas que só podem ser feitas em países civilizados. Mas é óbvio que quem deixou que o mundial fosse para o Qatar não é civilizado. Morre um trabalhador de dois em dois dias. Estima-se que morrerão sete mil até ao início do campeonato. A média de mortes na construção de estádios, nos mundiais até agora realizados, é de 6. Quando estiverem a ver os jogos, em 2022, lembrem-se disto.

Os escravos que constroem os estádios do Qatar, por Luís Aguilar

Calculamos que vão morrer 7 mil trabalhadores antes do início do Mundial." Sharan Burrow, secretária-geral da Confederação Internacional Sindical (ITUC), visitou o Qatar várias vezes e deparou-se com "condições desumanas, próprias de um estado de escravatura moderna". "Os trabalhadores estão fechados em campos protegidos por guardas e só saem dali para ir trabalhar. Muitos destes locais não têm água potável. Cheguei a provar a água salgada que lhes dão para beber e tomar banho. Ouvi homens adultos dizerem que eram tratados como cavalos num estábulo", disse à SÁBADO.

Uma investigação do jornal The Guardian em Dezembro de 2014 dava conta de que a cada dois dias de trabalho morria um trabalhador nepalês nas obras de construção para o Mundial de 2022. Nesse ano de 2014, segundo a Amnistia Internacional, 188 trabalhadores morreram nas obras. Entre as principais causas de morte estão acidentes de trabalho, ataques cardíacos provocados por longas horas sob altas temperaturas (no Verão podem atingir os 50 graus), doenças resultantes da vida precária e suicídios.



(The Guardian - Trabalhadores obrigados a trabalhar gratuitamente para o Mundial do Qatar » Reportagem em vídeo)

O governo nega, mas várias organizações de direitos humanos falam num estado de escravatura moderna e acusam a FIFA de não ter actuado para pressionar o país árabe a melhorar as condições de trabalho. O emirado conta com 1,8 milhões de trabalhadores migrantes oriundos, em grande parte, da Índia, Nepal, Filipinas, Egipto e Bangladesh. Dados da ITUC apontam para 2.112 mortos entre 2010 e Setembro de 2015 só em trabalhadores da Índia e do Nepal. 

(Amnistia Internacional denuncia abusos » link1, link2, link3, link4)

O número de mortes não encontra paralelo com nenhum grande evento desportivo anterior. Um gráfico apresentado pelo Washington Post, em Maio de 2015, dava conta dessa diferença: nunca houve mais de nove mortes desde 2006, fosse na organização de Jogos Olímpicos de Verão ou de Mundiais de futebol. A única excepção teve lugar nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, em Sochi, na Rússia: 60 trabalhadores mortos. 

"Ao analisar as estatísticas do Qatar, e vários relatórios de saúde produzidos nos últimos três anos, as previsões iniciais apontavam para 4 mil mortos até 2022, o que já seria inadmissível. Mas os números reais apontam para mil mortos anuais até ao início do Mundial. Os serviços de urgência dos hospitais do Qatar estão a receber 2.800 doentes por dia, mais 20 por cento do que no período entre 2013 e 2014", diz Sharan Burrow.

Perante a pressão de instituições como a ITUC e a Amnistia Internacional, o Qatar anunciou reformas para melhorar as condições de trabalho dos migrantes. Uma das mais significativas passava pela abolição do sistema kafala. Segundo esta lei, os empregadores podem confiscar os passaportes dos trabalhadores, impedindo que estes mudem de emprego ou saiam do país. A FIFA reagiu, no passado dia 1 de Abril, e garantiu que acompanha "com atenção" o que se passa no Qatar.

Receber 1,38 euros por hora
 
"As autoridades do Qatar prometeram pouco e cumpriram ainda menos", observa Mustafa Qadri, investigador da Amnistia para a região do Golfo. "O Qatar está a falhar aos trabalhadores migrantes. No ano passado, disseram que iriam encetar melhorias em relação aos seus direitos, mas não se registaram evoluções significativas." Mustafa Qadri lembra que muitos empregadores "não pagam a tempo" e alguns ficam mesmo a dever salários, "deixando os trabalhadores migrantes e as famílias, nos seus países, em situações de desespero". 

(Denúncia também no canal de desporto ESPN » neste link)

Há trabalhadores na construção de estádios que recebem menos de 1,38 euros por hora. Muitos deles são vítimas de duplos contratos: assinam um no seu país e recebem outro quando chegam ao Qatar, inferior em metade ao que tinham celebrado. Uma vez no emirado, já não podem regressar a casa. Há muitos trabalhadores que dizem ter ido para o Qatar por causa do dinheiro e que acabaram a ganhar menos do que se tivessem ficado nos seus países. Ao mesmo tempo, as construtoras esperam ter um lucro de 15 mil milhões de euros com as obras do Mundial. "Enriquecem à conta de migrantes que são discriminados racialmente e expostos a elevados riscos de acidentes de trabalho", alerta Sharan Burrow. 

(The Telegraph, Estádios construidos em condições sub-humanas » neste link)

O Qatar vai gastar 200 mil milhões de euros nas infra-estruturas para o Mundial 2022, incluindo a construção de nove estádios com ar condicionado e a renovação de outros três. Um orçamento 18 vezes superior ao de Mundiais anteriores e 10 vezes mais do que aquilo que a Rússia planeia investir para o torneio de 2018.

artigo na SABADO, links adicionais colocados por nós

Indiferença da FIFA » neste link

Mais escavatura no Golfo Pérsico » neste link