A EADS, hoje grupo Airbus, prometera um SIRESP seis vezes mais barato (€90 milhões em vez de €533 milhões), mas a proposta foi travada. Para a PJ, o então ministro Daniel Sanches tornou-se o principal suspeito de interferência no negócio, que envolvia a SLN.
No
final de maio de 2001, Almiro de Oliveira – presidente do grupo de
trabalho criado pelo governo de Guterres para estudar um sistema de
telecomunicações e emergência – recebeu na sua secretária uma carta da
EADS Defence & Security Networks, hoje Grupo Airbus e uma das
principais especialistas em radiocomunicações digitais para a segurança
pública.
Nessa carta, a EADS oferecia uma tecnologia digital (a
TETRAPOL) reconhecida pelo espaço Schengen, já operacional em 27 países,
entre eles França e Espanha, e com capacidade para ser “uma
infraestrutura compartida” entre todas as forças de segurança e de
emergência portuguesas. Prometia cobertura do território nacional em 95%
do tempo e 90% do espaço, oferecia um sistema que permitiria aos
bombeiros nunca deixarem de comunicar entre si quando estão fora da zona
de cobertura.
E o bónus para o Estado português é que a empresa
estimava o custo para fornecimento destes “equipamentos e prestação de
serviços associados” em apenas €90 milhões, cerca de seis vezes menos do
que viria a custar o Sistema Integrado das Redes de Emergência e
Segurança (SIRESP) adjudicado ao consórcio SLN/Motorola (€532,8 milhões
na proposta inicial).
A EADS manteve os contactos com o grupo de
trabalho liderado por Almiro de Oliveira e chegou a convidá-lo a
conhecer as redes de emergência e comunicações que desenvolvera em
Espanha e em França. Em maio de 2003, a empresa foi uma das cinco
contactadas oficialmente para apresentar uma proposta para um SIRESP – a
par da Siemens, da Motorola, da Nokia e da OTE. A 11 de julho desse
ano, teve acesso ao caderno de encargos em que se definiam todas as
condições do projeto.
No fim do prazo estipulado para
apresentação de propostas, em setembro de 2003, só o consórcio que
integrava a Motorola, a SLN, a Esegur, a Datacomp e a PT Ventures tinha
apresentado uma candidatura. Não que outros concorrentes não tivessem
mostrado interesse. A meio do verão, os representantes da EADS pediram o
alargamento do prazo, argumentando que, devido aos incêndios que
lavraram em Portugal nesse período, não tinham conseguido visitar os
locais onde deveriam ser instaladas as estações-base nas datas agendadas
no programa de visitas, organizado pelo Gabinete de Estudos e de
Planeamento de Instalações (GEPI). A 29 de agosto, a Comissão de
Avaliação negou o pedido da EADS, considerando-o “extemporâneo”, e
alegando que o argumento dos incêndios florestais “carecia de
fundamento” e de “razoabilidade”, pois todas as empresas convidadas
tinham tido as mesmas oportunidades e imprevistos e mais nenhuma se
tinha queixado ou pedido o adiamento.
Era para o Euro, mas afinal...
Não
conformada, a EADS interpôs um recurso hierárquico para o então ministro
da Administração Interna, alegando estar em causa o princípio da
concorrência.
A 8 de setembro de 2003, Figueiredo Lopes indeferiu o
pedido, esclarecendo que o mesmo era “extemporâneo” porque “inoportuno” e
“sem fundamento”.
A empresa, ainda assim, não se conformou, e a
15 de setembro, data limite para apresentação de propostas (esse prazo
tinha sido entretanto adiado de dia 1 para 15), voltou a protestar junto
da Comissão de Avaliação do Ministério da Administração Interna (MAI),
levantando pela primeira vez as suspeitas de que empresas concorrentes
teriam tido acesso a informações privilegiadas sobre o concurso antes de
receberem o caderno de encargos: “Face às atuais condições e com as
informações que foi possível obter nas mencionadas circunstâncias, a
EADS Telecom considera que não estão reunidas as condições necessárias
para que nenhuma empresa, sem informação previamente adquirida, possa
elaborar um estudo técnico-económico (…) e consequentemente proposta que
venha a adequar-se aos interesses e objetivos estabelecidos pelo Estado
português”.
A empresa reiterava que a sua tecnologia serviu
eventos como o Mundial de Futebol de Paris, em 1998, e que todos os seus
projetos tinham sido entregues dentro dos prazos. Porém, o prazo para o
concurso português (cerca de um mês e meio, alargado depois para dois
meses), alegava a EADS, não era suficiente para apresentação de uma
proposta “adequada e fiável”.
Apesar de só ter sido apresentada uma proposta a tempo e horas, e de esta ter sido avaliada entre o “medíocre e o suficiente” pela Comissão de Avaliação – que pediu a sua reformulação –, o MAI não viu razões para alargar o prazo, permitindo que outros interessados apresentassem outros sistemas e preços mais competitivos.
A
revolta da EADS por não ter conseguido apresentar um projeto não acabou
ali. A 7 de abril de 2004, a empresa voltou a contestar, escrevendo
desta vez uma carta ao então primeiro-ministro, Durão Barroso. Onde
estava afinal o sistema SIRESP – que, de acordo com o contrato, já devia
estar prestes a entrar em funcionamento –, perguntavam os responsáveis
da EADS. A questão era da maior importância porque um dos motivos para
as empresas convidadas não terem participado foi precisamente a
urgência: o Estado queria um sistema pronto a funcionar no Euro 2004.
Mas o Europeu de Futebol estava à porta e não havia SIRESP. E isso, por
si só, argumentava a EADS, era motivo suficiente para anular o contrato
feito com a SLN/Motorola, para abrir um novo concurso e permitir que o
Estado recebesse propostas mais “competitivas”.
“Deste modo”,
alegou a EADS, “ficou Portugal privado da possibilidade de avaliação de
propostas alternativas assentes em tecnologias experimentadas, com
particular sucesso nos sistemas de comunicações de emergência e
segurança de diversos países (…) e quiçá financeiramente mais
vantajosas.”
Mais uma vez, nada aconteceu. O MAI argumentou até,
em resposta ao gabinete do primeiro-ministro, que a urgência do SIRESP
nada tinha a ver com o Euro 2004. Não era verdade. No despacho do
próprio ministério, de setembro de 2003, que indefere o recurso
hierárquico interposto pela EADS, Figueiredo Lopes dera como exemplo da
urgência da entrada em funcionamento do SIRESP a necessidade de
segurança acrescida no campeonato de futebol organizado por Portugal. Os
prazos para entrega das propostas não podiam ser dilatados porque a
primeira fase de implementação do sistema teria de estar pronta
“impreterivelmente” até ao final de abril de 2004, conforme constava do
caderno de encargos.
O arguido que nunca o foi
Todas
estas reclamações e consequentes respostas constam do processo judicial
que investigou a adjudicação do SIRESP, entretanto arquivado e que a
VISÃO consultou. Os inspetores da Polícia Judiciária (PJ), que tomaram
conta do caso quando ainda era apenas uma investigação preventiva,
estranharam as respostas aos protestos da EADS e quiseram ouvir a
empresa. Um vice-presidente e outro alto responsável da EADS
deslocaram-se a Lisboa em maio de 2005 para serem ouvidos: confirmaram
que os prazos obrigatórios para apresentação das propostas, mesmo para
uma empresa com aquela experiência, eram impossíveis de cumprir;
defenderam que o lançamento de um novo concurso público teria deixado
todos os concorrentes em posição de igualdade e ainda acrescentaram que,
se o Estado português quisesse anular a adjudicação do SIRESP,
continuavam disponíveis para apresentar uma alternativa. Dado o tempo
decorrido, seria possível propor tecnologia mais avançada a um preço
mais competitivo.
Ao analisar a cronologia das reuniões e da
correspondência entre o MAI e o consórcio da Motorola sobre o Euro 2004,
a PJ descobriu outro dado curioso: como o consórcio não conseguiu
completar o SIRESP a tempo dos jogos do Europeu, ofereceu a determinada
altura um sistema alternativo de cobertura mínima para os locais dos
jogos com maiores níveis de risco. O MAI não reclamou por não estarem a
ser cumpridos os requisitos do caderno de encargos – e ainda agradeceu
ao consórcio por apresentar aquela alternativa. Que, afinal, ao que tudo
indica, também não terá chegado a ser usada.
A PJ decidiu abrir
uma averiguação preventiva a 23 de março de 2005, dia em que o jornal
Público noticiou que o SIRESP tinha sido adjudicado por um despacho
conjunto dos então ministros das Finanças e da Administração Interna,
Bagão Félix e Daniel Sanches. Não só com a agravante de o despacho ter
sido assinado três dias após as eleições antecipadas – ou seja, com o
governo em gestão – como também com o facto de Daniel Sanches ter
ligações ao consórcio vencedor, do qual fazia parte a Sociedade Lusa de
Negócios (SLN) – holding de que o ex-deputado do PSD Dias Loureiro era
acionista e Oliveira e Costa, presidente.
O mais curioso do
processo é que, apesar de Daniel Sanches nunca ter sido ouvido sequer na
qualidade de testemunha, o seu nome ficou gravado na primeira página do
primeiro volume do processo, no quadro onde se escrevem os nomes dos
arguidos. Ou seja, Sanches foi o primeiro suspeito desde que nasceu o
processo. Os inspetores da PJ construíram enormes organogramas para
demonstrar as ligações entre o ex-ministro e as empresas que integravam o
consórcio vencedor do contrato do SIRESP. Chegaram ao ponto de
desmontar um direito de resposta que o antigo ministro,
ex-diretor-adjunto da PJ e ex-diretor-geral do Serviço de Informações e
Segurança (SIS), publicara no Público, a 28 de abril de 2005.
Para
começar, contestou a PJ, não era verdade que a proposta do consórcio
SLN/Motorola tivesse sido admitida sem qualquer reclamação, como dizia
Daniel Sanches. Afinal, a 15 de setembro de 2003, a EADS protestara e
levantara suspeitas de acesso privilegiado a informação. Também não era
verdade que o SIRESP fosse inadiável devido a uma resolução do Conselho
de Ministros que aprovava o plano de combate aos fogos florestais para
2005. Esse plano, constatou a PJ, falava do aperfeiçoamento da rede VHF
em banda alta, mas não do SIRESP. Daniel Sanches insistiu na tecla de
que o SIRESP não tinha sido pensado tendo em vista o Euro 2004. A PJ não
precisou de pesquisar muito: uma resolução de Conselho de Ministros de
2003 definia que a primeira fase de implementação do projeto deveria
estar concluída entre 2003 e 2004, precisamente nos locais onde se iria
disputar o Europeu.
Tráfico de influência?
Daniel
Sanches ainda invocou não existir “qualquer incompatibilidade”, pois a
adjudicação tinha sido feita a uma “entidade absolutamente nova,
resultante de uma associação de empresas” em que não tinha capital e a
cujos corpos sociais nunca pertencera. A PJ tinha outra opinião: no
relatório e contas de 2003 do BPN, Daniel Sanches figurava como membro
da assembleia-geral. O banco era detido a 100% pela SLN. Sanches tinha
ainda sido administrador da Pleiade Investimentos e Participações, cargo
a que renunciou em julho de 2004 para tomar posse como ministro da
Administração Interna do governo de Santana Lopes. No conselho de
administração da Pleiade e da SLN estiveram também o ex-ministro Manuel
Dias Loureiro e Lencastre Bernardo (que passara também pela
administração das empresas VSegur e Serviplex, à semelhança de Daniel
Sanches).
No final da primeira fase de investigação, a 27 de maio
de 2005, os inspetores pediram para ser aberto um inquérito. Tinham
encontrado elementos que indiciavam “a prática de atos ilícitos” e uma
“demonstração clara” de que o consórcio a quem havia sido adjudicado o
SIRESP tivera “conhecimento antecipado e privilegiado sobre as condições
em que o mesmo ia decorrer”, razão pela qual teriam tido reuniões em
dezembro de 2002 quando a apresentação oficial fora feita apenas em maio
de 2003. Por outro lado, era para os investigadores incompreensível a
renegociação da proposta da Motorola quando já se sabia que os prazos
não seriam cumpridos. Em causa estavam suspeitas de tráfico de
influência e de participação económica em negócio.
O procurador
José Maia consentiu e o processo transformou-se em inquérito. Entraram
na investigação novos inspetores da PJ, fizeram-se buscas, foram ouvidos
alguns concorrentes (não a EADS) e constituídos arguidos os
representantes das empresas que compunham o consórcio vencedor. No
final, o procurador do Ministério Público desvalorizou o ato de
adjudicação de Daniel Sanches durante o governo em gestão, pois a
votação do conselho consultivo da PGR, que considerou aquele ato nulo,
não tinha sido unânime. Também não encontrou indícios de que Sanches
quisera beneficiar aquelas empresas, ou de que daí tinha tirado qualquer
proveito. Foi por falta desses indícios, explicou, que Daniel Sanches
nunca foi ouvido no processo. Era preciso, dizia, dar “o benefício da
dúvida”. Decorria o mês de abril de 2008 quando o processo levou o
carimbo “arquivado”.
(Artigo publicado na VISÃO 1271, de 13 de julho de 2017)