Diante da vigilância norte-americana e manipulações do Facebook, muitos ativistas cogitam abandonar a rede. Seria precipitação: há
imensa disputa a fazer
Em 2011, havia um forte sentimento de que a política radical estava mudando. A Primavera Árabe, os Indignados, o Occupy: tudo dava a impressão de que a ação direta e a democracia direta estavam saindo do gueto onde permaneceram, no movimento de altermundismo.
Com assembleias
massivas e uma política radical DIY (ou “Façamos nós
próprios”- “Do It Ourselves”, DIO em inglês), alguma coisa parecia estar
se transformando. Frente à “austeridade” e ao totalitarismo, uma
alternativa real estava sendo forjada.
Ao mesmo tempo, as ferramentas usadas nesses protestos e
rebeliões vieram para o centro do palco. Não somente os mecanismos de
tomada de decisão democráticos, mas também as infra-estruturas digitais
que, muitos argumentavam, facilitavam aquilo que era tão promissor
nesses movimentos.
As mídias sociais eram cada vez mais vistas como elemento essencial
para que grandes grupos pudessem organizar-se sem uma liderança
centralizada. Plataformas como o Facebook e o Twitter estavam
possibilitando às pessoas mobilizar-se não em estruturas hierárquicas
como sindicatos e partidos políticos, mas em redes horizontais.
Ativistas autônomos e subgrupos desfrutavam de autonomia tática,
enquanto permaneciam sendo parte de um todo maior.
Passaram-se quase quatro anos e agora grande parte do brilho dessa
narrativa se apagou. Alguns elementos das revoltas de 2011 foram
consumidos pela tragédia da guerra civil e das ditaduras restauradas,
enquanto outros se dispersaram.
É claro que quatro anos não significa um tempo longo no grande plano
da História, e o exemplo do Podemos e do Syriza sugere que talvez esses
movimentos estejam de fato evoluindo e desenvolvendo novas estratégias.
Uma vez que a fase de mobilização de massa e movimentos sociais radicais
de modo algum foi interrompida, o que está em disputa, talvez mais do
que qualquer outra coisa nos últimos quatro anos, é a promessa contida
nas ferramentas das rebeliões de 2011.
As mídias sociais, antes consideradas por alguns como a essência
mesma da política radical contemporânea, são agora vistas sob uma luz
mais crua e menos indulgente. Algumas experiências destacaram as
desigualdades e hierarquias implícitas que eram reforçadas pelas mídias
sociais.
Outras apontaram para a maneira como as mídias sociais exploram,
visando lucro, nosso comportamento online. A saga de Snowden mostrou
como nossa organização online é vulnerável, assim como a repressão do
ativismo baseado nas mídias sociais ocorrida na Turquia e em outros
lugares.
Mas haverá, diante dessas críticas, alguma coisa que possa ser salva?
Plataformas como Facebook e Twitter podem ser úteis na política
radical? Se sim, como? Eles ainda facilitam o tipo de organização que
era tão promissor em 2011 e que continua, de vários modos, a definir
política radical de esquerda?
A promessa das mídias sociais
As plataformas de mídia social são frequentemente consideradas meios
de comunicação, de auto-expressão e formação do discurso público. Da
mesma forma, contudo, as plataformas de mídia social – e as práticas de
comunicação em geral – atuam também como infra-estruturas que apóiam as
ações que desenvolvemos. Elas nos permitem partilhar informações e
recursos, assim como tomar decisões coletivas.
Nesse sentido, práticas de comunicação podem também ser entendidas
como um sistema de gerenciamento da informação. Esse é um conceito
emprestado do mundo dos negócios e da administração, e refere-se a
qualquer sistema, normalmente eletrônico e crescentemente digital, que
facilita a organização. Emails de trabalho e intranets pertencem a esse
tipo. Não só possibilitam às pessoas falar umas com as outras, mas
contribuem também para a realização das tarefas.
O que as mídias sociais podem oferecer, quando consideradas como
sistemas de gerenciamento da informação, plataformas que facilitam
certas formas de ação, é um modo para tornar organizações radicais e
anarquistas mais próximas das estruturas democráticas e participativas
que caracterizam os levantes de 2011 e a política radical de esquerda,
pelo menos desde a rebelião zapatista, o movimento anti-globalização dos
anos 1990 e, antes ainda, o feminismo radical dos anos 1960 e 1970.
As mídias sociais podem oferecer a infra-estrutura tanto para tomadas
de decisão democráticas e ações autônomas, possibilitando aos ativistas
acesso a recursos e informações que podem capacitá-los para agir – de
tal modo que estruturas mais hierárquicas de comunicação fiquem
reduzidas aos processos de comando e controle.
Embora haja críticas significativas de ativistas, assim como de
acadêmicos, às mídias sociais – com foco na privacidade e vigilância,
controle corporativo e estatal, a economia política de trabalho gratuito
e a psicologia e comportamento encorajados pela arquitetura das
plataformas mainstream – quero sugerir que ainda existe um
potencial inerente às mídias sociais, dada a natureza das práticas de
comunicação a que dão suporte.
Essas práticas podem ser descritas como comunicação de
muitos-para-muitos. São potencialmente construídas sobre diálogos com
múltiplos atores, o que expressa um dos elementos necessários à
democracia participativa da política radical de esquerda. As mídias
sociais podem, portanto, ser vistas como sistemas que facilitam formas
de organização radicalmente democráticas e que podem dar suporte a tipos
de autonomia e horizontalidade que, em parte, foram vistas nos
movimentos de 2011.
Essa é a promessa das mídias sociais. Uma promessa que ainda pode ser
cumprida. Se as mídias sociais apresentam oportunidade para a
comunicação horizontal, de conversação, e esse tipo de comunicação é
consistente com os modos como tentamos imaginar relacionamentos sociais e
estruturas de tomada-de-decisão não-hierárquicos, então as mídias
sociais podem ser consideradas com potencial para ser parte da política
radical de esquerda.
Práticas de comunicação interna e externa
Como parte de minha pesquisa de doutorado, entrevistei muitos
ativistas envolvidos na esquerda radical e na cena anarquista
holandesas. As imagens que eles apresentaram sobre práticas de
comunicação dos grupos com que se relacionavam podem ser usadas para
trabalhar algumas ideias em torno da comunicação de muitos-para-muitos,
de sua relação com a política radical e a promessa das mídias sociais.
Internamente, todos os grupos de esquerda radical em questão
adaptam-se, mais ou menos, ao modelo de comunicação de
muitos-para-muitos. Grande parte dessa comunicação é feita por meio de
encontros presenciais, nos quais as pessoas tentam chegar ao consenso
sobre temas em discussão e decisões que precisam ser tomadas.
Sobre tecnologia de redes sociais, no entanto, os ativistas falaram
das listas de discussão por e-mail e dos fóruns on-line, de uso comum na
política radical de esquerda desde ao menos a Batalha de Seattle, em
1999, e os primórdios do movimento altermundista.
Embora nenhum dos grupos utilizasse, em suas práticas internas de
comunicação, plataformas mais novas e mainstream como o Facebook, um
deles usava o site alternativo de relacionamento social Crabgrass
como parte central de sua infra-estrutura de debate e
tomada-de-decisão. O Crabgrass foi desenvolvido por pessoas ligadas ao
coletivo RiseUp,
que oferece endereços de e-mail seguros a ativistas. O objetivo é
facilitar a formação de redes sociais e colaboração em grupo, com
inclinação especificamente radical e de esquerda.
Externamente, a comunicação de muitos-para-muitos tornou-se muito
mais rara.
Embora a maioria dos grupos usem Facebook e Twitter, usam-nos
principalmente como extensões de seus sites, que por sua vez atuam
principalmente como extensões de seus jornais impressos.
As três exceções ressaltam as potencialidades de ambas as plataformas
de mídia social, a mainstream e a alternativa, no desempenho desse
papel. Um grupo, envolvido em organização comunitária, era ativo no
Facebook não apenas compartilhando artigos e avisos, mas também
respondendo a comentários e envolvendo-se em discussões com outros
usuários. Outro, usou um mapeamento coletivo, em estilo crowdsourced
de forma a refletir o escopo da comunicação de muitos-para-muitos para
apoiar a ação autônoma. O terceiro exemplo de uso de mídias sociais
alinhado a esse ethos participativo veio de um grupo que publicava
comentários e respostas do Facebook e do Twitter em seu jornal,
facilitando algum nível de conversação entre os participantes do grupo e
aqueles que estavam fora dele.
Institucionalizando a autonomia
A comunicação de muitos-para-muitos facilitada pelas mídias sociais –
na medida em que permite a conversa, em vez de simplesmente a
transmissão de informações, ou mesmo ordens –, está intimamente ligada a
uma visão de organização de esquerda radical e anarquista. Se a
representação do futuro, a realização dos objetivos políticos no aqui e
agora, são tidas como parte das principais preocupações dos movimentos
sociais radicais, então o compromisso com a comunicação de
muitos-para-muitos pode ser considerado tão importante quanto o
compromisso com a democracia e a igualdade.
Ela tem o potencial de empoderar ativistas para agir com autonomia e
ser um alicerce da democracia participativa. Nesse sentido, as
plataformas de mídia social podem contribuir para libertar o ativismo
das estruturas de cima para baixo que costumavam ser comuns em partidos
políticos e dos sindicatos.
Haverá todavia outros modos de olhar para esses tipos de organização e
de estrutura sugeridos pelas mídias sociais e pela comunicação de
muitos-para-muitos? No início deste artigo mencionei que as mídias
sociais e o exemplo das rebeliões de 2011 perderam parte daquilo que os
tornava tão atrativos.
Os ativistas são, parece, cada vez mais
cautelosos (e talvez com razão, dadas as limitações) com as organizações
de relacionamento e a comunicação em rede. Há cerca de um ano, contudo,
a política radical teve uma ligeira mudança.
Em lugar de movimentos sociais que se opõem completamente aos
partidos políticos e guardam autonomia com relação a eles, o ascenso do
Podemos e do Syriza, e certamente a onda de apoio aos Verdes, na
Inglaterra e no País de Gales, e ao Partido Nacional Escocês, na
Escócia, pode apontar para um retorno do partido de massas como elemento
da estratégia dos movimentos sociais radicais de esquerda.
O Podemos e o Syriza, sob muitos pontos de vista, tornaram-se
articulações institucionais de movimentos sociais de massa. Não os
substituíram e têm clareza de que pretendem atuar como braços
parlamentares a serviço desses movimentos – embora as tensões atuais no
Syriza sugiram que isso é muito mais problemático do que alguns querem
fazer parecer.
No caso do Podemos, significou uma continuidade da democracia direta
radical do movimento 15-M. Para tanto, o partido contou com as mídias
sociais e a comunicação de muitos-para-muitos não para levar suas
mensagens até os eleitores, mas na definição do próprio conteúdo dessas
mensagens e de suas políticas.
As mídias sociais podem continuar a ter um papel na política radical
de esquerda, afinal de contas. As práticas de comunicação de
muitos-para-muitos a que dão suporte podem, na sua melhor forma, ser
prefigurativas das metas da política radical, de tomadas-de-decisão
participativas e democráticas. Como sistema de gerenciamento da
informação, facilitam a ação concreta – os exemplos dos grupos de
esquerda radical em minha pesquisa de doutorado apontam para essa
conclusão.
As diversas mídias sociais mainstream (como Facebook e Twitter), e as
plataformas alternativas (tais como Crabgrass e n-1), podem ser parte
importante da política radical de esquerda, seja na forma de mobilização
dos movimentos sociais de massa ou de articulação desses movimentos em
partidos políticos mais democráticos.
Por Thomas Swann
Tradução: Inês Castilho
no excelente site :
http://outraspalavras.net/