10/02/2016

Sobre o Fenómeno dos Empregos de Merda, por David Graeber

Nos últimos anos na Europa e nos Estados Unidos o horário de trabalho tem vindo a aumentar. 

Em Portugal a jornada de trabalho para a Função Pública amentou das 35 para as 40 horas perante a passividade quase total dos sindicatos oficiais. Em Espanha, a CNT e a CGT reivindicam há muito as 30 horas semanais. 

Há pouco mais de 80 anos os economistas acreditavam que na viragem do século XX para o XXI, devido aos progressos tecnológicos (que continuam a verificar-se) o tempo de trabalho diário não ultrapassaria as 3 ou as 4 horas. O antropólogo anarquista e membro do Occupy Wall Street, David Graeber, explica a inutilidade dos empregos (e dos trabalhos) de merda criados nas últimas décadas. Que só servem para nos prender aos locais de trabalho, não para produzir ou fazer quaisquer trabalhos socialmente relevantes.


Sobre o Fenómeno dos Empregos de Merda

por David Graeber 

No ano de 1930 John Maynard Keynes previu que, até ao final do século XX, a tecnologia teria avançado o suficiente para que países como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos pudessem implementar a semana laboral de 15 horas. Não faltam motivos para acreditar que tinha razão, dado que a nossa tecnologia actual o permitiria. E, no entanto, isso não aconteceu. Em vez disso, a tecnologia inventou novas formas para que trabalhemos mais. A fim de alcançar este objectivo, foram criados novos trabalhos, que não têm, efectivamente, nenhum sentido. Enormes quantidades de pessoas, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, passam toda a sua vida profissional na execução de tarefas que, no fundo, consideram completamente desnecessárias. É uma situação que provoca um dano moral e espiritual profundo. É uma cicatriz que marca a nossa alma colectiva. Mas quase ninguém fala disso.

Por que é que nunca se materializou a utopia prometida por Keynes – uma utopia ainda aguardada com grande expectativa nos anos 60? A explicação mais generalizada hoje em dia é que Keynes não soube prever o aumento massivo do Consumismo. Face à alternativa entre menos horas de trabalho ou mais brinquedos e prazeres, teríamos escolhido colectivamente a segunda opção. É uma fábula muito bonita, mas basta apenas um momento de reflexão para vermos que isso não pode ser realmente verdade. De facto temos assistido à criação de uma variedade infinita de novos empregos e indústrias, desde a década de 20, mas muito poucos têm alguma coisa a ver com a produção e distribuição de sushi, iPhones ou de calçado desportivo de moda.

Então, quais são, precisamente, esses novos postos de trabalho? 

Um relatório comparando o emprego nos EUA entre 1910 e 2000, dá-nos uma imagem muito clara (que, sublinho se vê praticamente reflectida no Reino Unido). Ao longo do século passado, diminuiu drasticamente o número de trabalhadores empregados no serviço doméstico, na indústria e no sector agrícola. Ao mesmo tempo, “a nível profissional, os directores, os administrativos, os vendedores e os trabalhadores dos serviçostriplicaram, crescendo de um quarto a três quartos do emprego total. Por outras palavras, os empregos no sector produtivo, tal como previsto, muitos trabalhos produtivos automatizaram-se (ainda que se conte a totalidade dos trabalhadores da indústria a nível mundial, incluindo a grande massa de trabalhadores explorados da Índia e da China, estes trabalhadores já não representam uma percentagem da população mundial tão elevada como era habitual).

Mas ao contrário de possibilitar uma redução massiva do horário laboral de maneira a que todas as pessoas tenham tempo livre para se ocuparem dos seus próprios projectos, prazeres, visões e ideias, temos visto um aumento do tempo de trabalho tanto no “sector de serviços” como no administrativo. Isto inclui a criação de novas indústrias, como os serviços financeiros ou de telemarketing e a expansão de sectores como o direito empresarial, a gestão do ensino e da saúde, os recursos humanos e as relações públicas. E estes números nem sequer reflectem todas as pessoas cujo trabalho é fornecer serviços administrativos, técnicos, ou de segurança para essas indústrias, para não mencionar toda uma gama de sectores secundários (tratadores de cães, entregadores de pizza 24 horas) que devem a sua existência ao facto do resto da população passar tanto tempo a trabalhar noutros sectores. 

Estes são os trabalhos a que proponho chamar de “empregos de merda.”

É como se alguém estivesse a inventar trabalhos apenas para nos terem ocupados. É aqui, precisamente, que reside o mistério. E isso é exactamente o que não devia acontecer no capitalismo. Claro que, nos antigos e ineficientes estados socialistas como a União Soviética, onde o emprego era considerado tanto um direito como uma obrigação sagrada, o sistema criava todos os empregos que fizessem falta, (era este o motivo que levava a que nas lojas soviéticas fossem “precisos” três empregados para vender um só bife). Mas, é claro, este é o tipo de problema que é suposto ser corrigido com a concorrência dos mercados. De acordo com a teoria económica dominante, desperdiçar dinheiro em postos de trabalho desnecessários é o que menos interessa a uma companhia que queira ter lucro. Mas ainda assim, e sem se perceber muito bem porquê, é isso que acontece.

Ainda que muitas empresas se dediquem a reduzir o número de trabalhadores de forma cruel, estes despedimentos – e o aumento de responsabilidade para os que permanecem -, recaem invariavelmente sobre os que se dedicam a fabricar, transportar, reparar e manter as coisas.

Devido a uma estranha metamorfose, que ninguém é capaz de explicar, o número de administrativos assalariados parece continuar a aumentar.  O resultado, e isto acontecia também com os trabalhadores soviéticos, é que cada vez há mais empregados que, teoricamente, trabalham 40 ou 50 horas semanais, mas que, na prática, só trabalham as 15 horas previstas por Keynes, já que levam o resto do dia a organizarem ou a participarem em seminários motivacionais, actualizando os seus perfis do Facebook ou fazendo downloads de vídeos e musica.

É claro que a reposta não é económica, mas sim moral e política. A classe dirigente descobriu que uma população feliz e produtiva com abundante tempo livre nas suas mãos representa um perigo mortal (recordemos o que começou a acontecer na primeira vez em que houve uma pequena aproximação a algo deste tipo, nos anos 60). Por outro lado, o sentimento de que o trabalho é um valor moral em si mesmo e que quem não esteja disposto a submeter-se a uma disciplina laboral intensa durante a maior parte da sua vida não merece nada, é algo que lhes é muito conveniente.

Certa vez, ao contemplar o crescimento aparentemente interminável de responsabilidades administrativas nos departamentos académicos britânicos, imaginei uma possível visão do inferno. O inferno é um conjunto de indivíduos que passam a maior parte do seu desempenhando tarefas de que nem gostam nem fazem especialmente bem. Imaginemos que se contratam uns marceneiros altamente qualificados e que, de repente, descobrem que o seu trabalho consistirá em passarem grande parte do dia a fritarem peixe. Não é que a tarefa realmente necessite de ser feita – há apenas um número muito limitado de peixes que é preciso fritar. Ainda assim, todos eles tornam-se obcecados com a suspeita de que alguns dos seus companheiros possam passar mais tempo a talhar madeira do que a cumprirem as suas responsabilidade como fritadores de peixe que, rapidamente, vamos encontrar pilhas intermináveis de inútil peixe mal frito, acumulado por toda a oficina, acabando, todos eles, por se dedicarem exclusivamente a isso.

Acho que esta é realmente uma descrição bastante precisa da dinâmica moral da nossa própria economia.

Estou consciente de que argumentos como este vão ter objecções imediatas. “Quem és tu para determinar quais os trabalhos que são ‘necessários’? O que é necessário, afinal? És professor de antropologia, explica-me a ‘necessidade’ disso? “. (E, na verdade muitos leitores de imprensa cor-de-rosa classificariam o meu trabalho como a definição por excelência de um investimento social desperdiçado). E, em certo sentido, isso é obviamente verdadeiro. Não há uma forma objectiva de medir o valor social.

Não me atreveria a dizer a uma pessoa que está convencida de estar a contribuir com algo importante para a humanidade, de que, na verdade, está equivocada. Mas o que se passa com aqueles que têm a certeza de que os seus trabalhos não servem para nada? -Não há muito tempo atrás retomei o contacto com um amigo de escola que não via desde os meus 12 anos. Fiquei espantado ao descobrir que nesse intervalo de tempo, ele se tinha tornado poeta, e, foi vocalista de uma banda de rock indie. Inclusivamente, tinha ouvido algumas das suas músicas na rádio sem ter ideia que o cantor era meu amigo de infância. Ele era, obviamente, uma pessoa inovadora e genial, e o seu trabalho tinha, sem dúvida, melhorado e alegrado a vida de muitas pessoas em todo o mundo. 

No entanto, depois de um par de álbuns sem sucesso, perdeu o contrato com a editora e atormentado com dívidas e uma filha recém-nascida, acabou, como ele descreveu, por “tomar a opção que, por exclusão, muitas pessoas sem rumo escolhem: a Faculdade de Direito”. Agora é um advogado de negócios e trabalha numa proeminente empresa de Nova York. Ele foi o primeiro a admitir que o seu trabalho era totalmente sem sentido, não contribuindo em nada para a humanidade e que, na sua própria opinião, nem sequer deveria existir.

Chegados aqui há uma série de perguntas que podemos fazer. A primeira seria: o que é que isto revela sobre a nossa sociedade que parece gerar uma procura extremamente limitada para poetas e músicos talentosos, mas uma procura aparentemente infinita de especialistas em direito empresarial. (Resposta: Se 1% da população controla a maior parte da riqueza disponível, o denominado “mercado” reflectirá o que essa ínfima minoria, e ninguém a não serem eles, acha que é útil ou importante). Mas, ainda mais, isto mostra que a maioria das pessoas nesses empregos estão conscientes desta realidade. Na verdade, creio que nunca conheci nenhum advogado corporativo que não achasse que o seu trabalho é uma estupidez. O mesmo é válido para quase todos os novos sectores anteriormente mencionados. 

Há toda uma classe de profissionais assalariados que se os encontrarmos numa festa e lhes confessarmos que nos dedicamos a algo que pode ser considerado interessante (como, por exemplo, a antropologia) evitam falar da sua profissão. Mas, depois de algumas bebidas, é vê-los a fazerem discursos inflamados sobre a estupidez e a inutilidade do seu trabalho.

Há aqui uma profunda violência psicológica. Como é que podemos fazer uma discussão séria sobre a dignidade laboral quando há tanta gente que, no fundo, acha que o seu trabalho nem sequer deveria existir? Inevitavelmente, isto dá lugar ao ressentimento e a uma raiva muito profunda. No entanto, é no engenho peculiar da nossa sociedade que os governantes encontraram uma maneira – como no exemplo dos fritadores de peixe – de garantir que a raiva é dirigida precisamente contra aqueles que realizam tarefas úteis. Parece mesmo haver na nossa sociedade uma regra geral segundo a qual quanto um trabalho é mais benéfico para os outros, pior é a sua remuneração. Mais uma vez é difícil encontrar uma avaliação objectiva, mas uma maneira fácil de ter uma ideia seria perguntarmo-nos: que aconteceria se todo este grupo de trabalhadores simplesmente desaparecesse?  

Diga o que se disser sobre enfermeiros, empregados do lixo ou mecânicos, é óbvio que se eles desaparecessem numa nuvem de fumo, os resultados seriam imediatos e catastróficos. Um mundo sem professores ou trabalhadores portuários não tardaria a estar em apuros e um mundo sem escritores de ficção científica ou músicos de ska seria, sem dúvida, um mundo pior. Ainda não está totalmente claro quanto sofreria a humanidade se todos os investidores de capital privado, lobyistas, investigadores, seguradores, operadores de telemarketing, oficiais de justiça ou consultores legais se esfumassem da mesma forma. (Há quem suspeite que tudo melhoraria sensivelmente). No entanto, para além de um punhado de bem elogiadas excepções, como, por exemplo, os médicos, a “regra” mantém-se com surpreendente frequência.

Ainda mais perversa é a noção generalizada de que é assim que as coisas devem ser. Este é um dos segredos do êxito do populismo de direita. Podemos comprová-lo quando a imprensa sensacionalista suscita o ressentimento contra os trabalhadores do metro por paralisarem Londres durante um conflito laboral. O simples facto de que os trabalhadores do metro possam paralisar toda a cidade de Londres demonstra a necessidade do trabalho que desempenham, mas é precisamente isso que parece incomodar tantas pessoas. Nos Estados Unidos vão ainda mais longe; os Republicanos tiveram muito êxito propagando o ressentimento relativamente aos professores ou aos operários do sector automóvel ao chamar a atenção para os seus salários e prestações sociais supostamente excessivos (e não contra os administradores escolares e gestores da indústria automóvel que são quem realmente causa os problemas, o que é significativo).

É como se eles nos estivessem a dizer: “mas sim, tens a sorte de poder ensinar crianças! Ou fazer carros! Fazeis trabalhos de verdade! E, como se fosse pouco, tendes a desfaçatez de reclamar pensões de reforma e cuidados de saúde equivalentes às da classe média!?”

Se alguém tivesse desenhado um regime de trabalho com o fim exclusivo de manter os privilégios do mundo financeiro dificilmente podia ter feito melhor. Os trabalhadores que realmente produzem sofrem uma exploração e uma precariedade constantes. Os restantes dividem-se entre o estrato aterrorizado e universalmente desprezado dos desempregados e outro estrato maior, que basicamente recebe um salário em troca de não fazer nada, em lugares desenhados para que se identifiquem com a sensibilidade e a perspectiva da classe dirigente (directores, administradores, etc.) – e em particular dos seus avatares financeiros – a qual, ao mesmo tempo, promove o crescente ressentimento contra aqueles cujo trabalho tem um valor social claro e indiscutível. 

Evidentemente que este sistema não é fruto de um plano inicialmente previsto, mas emergiu como o resultado de quase um século de tentativas e erros. E é a única explicação possível para o facto de, apesar da nossa capacidade tecnológica, não se ter implantado ainda a jornada laboral de três ou quatro horas.

“On the Phenomenon of Bullshit Jobs” by David Graeber, aqui
Traduzido pelo Colectivo Libertário Évora a partir da versão espanhola