Nesta manhã de Junho está um tempo radioso na praia onde se alinham os barcos de pesca pintalgados a várias cores. O brilho do sol, o azul do céu e a ressaca do mar fazem a paisagem parecer um postal. Mas este cenário encantador não engana durante muito tempo: aqui, o Mediterrâneo está poluído, a linha do horizonte encontra-se obstruída pelas fragatas de guerra e os céus são sulcados pelos aviões de caça e pelos drones. Estamos na Faixa de Gaza, um território sobrepovoado (2 milhões de habitantes em 365 quilómetros quadrados) e sitiado por Israel.
Os pescadores que nos recebem no seu casebre em Beit Lahya, nos arredores da cidade de Gaza, mostram má cara. Israel, que impõe há treze anos um bloqueio implacável — aéreo, marítimo e terrestre — à língua de terra palestiniana, impede-lhes desde há dois dias qualquer saída para o mar, depois de ter já reduzido progressivamente a sua área de navegação. A razão invocada é o arremesso de balões e papagaios voadores incendiários sobre localidades israelitas — principalmente kibutz — situados na orla terrestre da faixa costeira. A 18 de Junho, depois de duas noites de hostilidades [1], seguidas de uma regresso à «calma», Telavive voltará a autorizar a pesca, mas apenas dentro do limite de dez mil milhas marítimas (dezoito quilómetros e meio), longe das águas ricas em peixe. Uma medida de excepção cujo levantamento é regularmente exigido pelo Hamas, o partido islamita no poder desde 2006 em Gaza, em negociações indirectas com Israel.
«Os navios de patrulha israelitas só estão a uns três ou quatros quilómetros pode vê-los a olho nu», diz-nos Jihad Al-Sultan, o responsável do comité sindical dos pescadores do Norte da Faixa de Gaza, apontando o alto mar com o dedo. «Quando os nossos pescadores estão no mar, eles disparam sobre eles constantemente, a maior parte das vezes sem uma notificação. Recentemente vários deles foram feridos e as suas embarcações ficaram seriamente danificadas.» Durante o primeiro semestre de 2019, as forças navais israelitas abriram fogo mais de duzentas vezes sobre os pescadores, feriram cerca de trinta deles e apreenderam uns doze barcos, segundo duas organizações não governamentais palestiniana e israelita — o Centro pelos Direitos Humanos Al-Mezan e a B’Tselem. Dois marinheiros de Gaza foram mortos em 2018.
Em 2000, a Faixa de Gaza tinha cerca de 10 mil trabalhadores do mar. Dois terços deles tiveram de desistir, por falta de acesso às águas piscosas — Israel exclui-os de 85% das zonas marítimas a que, no entanto, o direito internacional lhes dá acesso —, pelo que hoje contam-se apenas 3500 pescadores, 95% dos quais vivem abaixo do limiar de pobreza (menos de 5 euros por dia), contra 50% em 2008.
Dirigimo-nos a Khuzaa, um povoado próximo de Khan Yunés, uma das principais cidades do Sul do enclave. Também aqui o moral está em baixo. Apesar de a miséria ser patente, Khaled Qadeh, um agricultor com 34 anos, de olhos penetrantes protegidos pelo chapéu feito de vime, convida-nos para ocupar um lugar à volta de uma merenda na pequena tenda de descanso montada na orla do seu campo. As suas terras, distribuídas por 11 dunums (1,1 hectares), estão situadas a algumas centenas de metros da vedação «fronteiriça» israelita, que não é reconhecida pelo direito internacional. Um entrelaçado de 65 quilómetros de muros, trincheiras, barreiras metálicas, redes de arame e de arame-farpado circunda a Faixa de Gaza e faz-se acompanhar por uma zona-tampão que varia entre os 300 metros e 1,5 quilómetros quadrados de profundidade (ver mapa). Esta área de exclusão militar entra por 25% do território e invade 35% das superfícies cultiváveis, bem longe da linha do armistício de 1949 («Linha Verde») que separa oficialmente Israel e Gaza. «A minha família também possui 20 dunums de terras do outro lado da “Linha Verde”, mas perdemo-las em 1948 [ano da criação do Estado de Israel]», explica-nos Khaled Qadeh.
Um lugar «inabitável» até 2020, segundo as Nações Unidas
No magro hectare plantado de que dispõe, o camponês só pode explorar plenamente um terço das parcelas. «O resto do meu campo, ao longo da “no-go zone”, é de difícil acesso, porque na maior parte do tempo os israelitas impedem-me de ir lá, e eles têm o gatilho fácil, para já não falar dos danos causados pelos tanques e os buldózeres deles. Tal como todos os camponeses da zona fronteiriça, eu estou muitas vezes exposto aos tiros, inclusive aqui onde estamos. Os israelitas proíbem-me também de trabalhar de noite para aproveitar quando há corrente eléctrica: se eles suspeitam do mais pequeno movimento, metralham ou bombardeiam», conta-nos Khaled Qadeh com um tom vivo, enquanto um blindado israelita que patrulha ao longe levanta uma nuvem de poeira. O rendimento deste agricultor caiu 80% desde que foi implantada a zona-tampão, que se seguiu ao desmantelamento dos colonatos judaicos de Gaza, em 2005, e que foi instaurado o bloqueio, no ano seguinte. A sua actividade é a única fonte de rendimentos da família, e ele está crivado de dívidas. O pequeno terreno que ele consegue cultivar apenas lhe permite ganhar uns 400 shekels (100 euros) por mês, graças à venda dos seus produtos, e alimentar os seus. O sector agrário, que dá trabalho a 44 mil pessoas (cerca de 10% dos empregos), teve uma quebra de mais de 30% desde 2014 [2].
A situação dos pescadores e dos agricultores é semelhante à que se verifica em toda a faixa costeira: «catastrófica» e «insustentável», segundo os termos de Isabelle Durant, directora-adjunta da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (CNUCED) [3]. Desde 2012 que a Organização das Nações Unidas (ONU) fez soar o alarme, considerando que o território se tornará «inabitável» até 2020 se o bloqueio imposto por Israel, com a colaboração do Egipto, não for levantado [4]. Cortada do mundo desde há oito anos, Gaza já sofrera naquela altura duas guerras, lançadas por Telavive em 2006 e depois em 2008-2009 (mais de 1800 mortos do lado palestiniano, uns vinte do lado israelita). Em 2017, depois de duas outras guerras (em 2012, depois em 2014, com um balanço acumulado de 2500 mortos de Gaza, contra 72 de Israel), Robert Pipper, então coordenador humanitário da ONU para os territórios palestinianos ocupados, constatava o seguinte: «A degradação da situação acelerou-se mais depressa do que previsto (…). Talvez Gaza seja já inabitável» [5].
No total da população, 70% possui o estatuto de refugiado desde 1948 e metade tem menos de 15 anos. Hoje, o desemprego ascende a 53% da população activa (70% entre os jovens e 85% entre as mulheres) — um recorde mundial —, a pobreza atinge mais do que uma em cada duas pessoas e a economia local colapsou (-6,9% de crescimento em 2018) [6]. Além disso, as infra-estruturas e «capacidades produtivas foram aniquiladas», sublinha a CNUCED [7]. «Entre as destruições materiais e os custos da reconstrução, só a factura da última guerra [a de 2014] ascende a 11 mil milhões de dólares», indica Ali Al-Hayek, presidente da Associação dos Empresários Palestinianos (PBA), com quem nos encontramos na sede da organização, no centro da cidade. «Foram varridas do mapa mais de mil fábricas, oficinas e lojas, entre outras. Israel também nos faz uma guerra económica.» Por causa do bloqueio, muitas empresas tiveram de fechar as portas, reduzir salários ou despedir. «A Faixa de Gaza parece uma grande prisão onde se confinou todo um povo submetido a uma ocupação militar, e ao qual são administradas doses de tranquilizantes, como a ajuda humanitária, para evitar a implosão», resume Ghazi Hamad, vice-ministro do Desenvolvimento Social e personalidade destacada do Hamas. «Desde a eleição do Hamas, em 2006, sofremos uma punição colectiva sem fim à vista», declara-nos por seu lado o analista gazense Fathi Sabah, colaborador do jornal pan-árabe Al-Hayat. «Este bloqueio é acima de tudo um meio de pressão usado por Israel, com a cumplicidade da comunidade internacional, para nos pôr de joelhos.»
O cerco israelita afecta todos os aspectos do quotidiano. Fez mesmo emergir uma nova «normalidade». A precariedade energética, por exemplo: desde a destruição por Telavive da única central eléctrica, em Junho de 2006, o acesso à electricidade é aleatório. A central foi em parte reconstruída, mas por causa da falta de fuelóleo só opera a 20% das suas capacidades. O território tem por isso de se abastecer principalmente junto de Israel, que fornece a electricidade — facturada à Autoridade Palestiniana da Cisjordânia — em quantidade limitada. Os cortes de corrente ditam o ritmo da vida dos habitantes de Gaza. «Nós só temos oito a doze horas de electricidade a cada vinte e quatro horas, e em horários variáveis», explica-nos Ghada Al-Kord, jornalista e tradutora de 34 anos. «A maioria das casas não possui geradores de electricidade, demasiado caros, para aliviar os cortes. Isso significa, por exemplo, que não podemos guardar quase nada no frigorífico. Temos por isso de nos organizar de dia para dia. Há dois anos ainda era pior.» De Abril de 2017 a Janeiro de 2018, Mahmud Abbas, o presidente da Autoridade e líder da Fatah, recusou pagar a Israel a factura da electricidade para exercer pressão sobre os seus rivais do Hamas. Consequência: a população só tinha entre três e quatro horas de corrente por dia. Os habitantes estão além disso confrontado com a escassez de água. Devido à poluição do aquífero costeiro, 85% dos recursos do qual são controlados por Israel, mais de 95% dos lençóis freáticos atribuídos ao enclave são insalubres.
O acesso aos cuidados de saúde foi também muito atingido pelo embargo. O hospital Al-Shifa, o maior do território, outrora famoso, suscita hoje apreensão. Os gazenses, fiéis ao seu sentido de auto-ridicularização, brincam a respeito da instituição: «Entramos lá vivos mas saímos com os pés para a frente». Há razões para o afirmarem. Com falta de medicamentos, material e camas para tratar dos muitos doentes, os hospitais transformaram-se em locais para morrer. As proibições à importação de produtos de primeira necessidade, a falta de pessoal, os cortes de corrente, mas também os danos causados — deliberadamente — pela artilharia israelita, fizeram da saúde um sector sinistrado. «Falta-nos tudo», lamenta o porta-voz das autoridades sanitárias em Gaza, Ashraf Al-Qadra, que apresenta um sórdido catálogo de elementos heterogéneos: «Não temos acesso a mais de 50% dos medicamentos essenciais, 65% dos doentes oncológicos são privados de tratamento, uma grande parte das intervenções cirúrgicas não pode ser efectuada»…
Balas explosivas que causam danos irreversíveis
No hospital Al-Shifa, o cenário é edificante: cruzamo-nos com muitos estropiados — a maior parte jovens —, as paredes estão desbotadas, as salas de espera sobrelotadas, o pessoal esgotado. Mohamed Chahin, cirurgião ortopédico, ocupa-se essencialmente dos manifestantes feridos pelos soldados israelitas durante as concentrações semanais organizadas em frente à vedação «fronteiriça» israelita no quadro da «grande marcha do retorno» (Massirat Al-Awda). Todas as sextas-feiras, dia de manifestação, os médicos têm de fazer face ao afluxo de feridos. «Há muitos doentes, e por vezes muito jovens», conta Mohamed Chahin. «Eles apresentam lesões profundas que até agora nunca tínhamos visto. Os israelitas utilizam balas explosivas que destroem os tecidos musculares, as articulações e os nervos. Quando os snipers deles não atiram para matar — no peito ou em cheio na cabeça —, eles atiram às pernas ou às partes mais sensíveis do corpo para causar danos irreversíveis. Dir-se-ia que tiveram aulas de anatomia. Muitos manifestantes atingidos vêem-se com deficiência para toda a vida ou têm de ser amputados, porque temos falta de equipamentos.» Dos 30 mil feridos recenseados desde o início da «grande marcha do retorno», perto de 140 (uns 30 dos quais são crianças) perderam um membro inferior ou superior e, segundo a ONU, 1700 estão em risco de amputação nos dois anos seguintes, na ausência de autorização israelita para serem evacuados.
Os jovens estão na primeira linha das manifestações da «grande marcha». Este movimento de protesto popular e não armado, que reúne todas as semanas milhares de famílias, foi lançado a 30 de Março de 2018, antes da comemoração anual daquilo que os palestinianos chamam a Nakba [8], a 15 de Maio. O termo, traduzido por «catástrofe», designa o êxodo de 1948, durante o qual 800 mil palestinianos foram expulsos das suas casas pelos israelitas e refugiaram-se em Gaza, na Cisjordânia ou nos países árabes vizinhos. Uma sexta-feira, durante a tarde, deslocamo-nos a Malaka, no leste de Gaza, que é um dos cinco lugares onde ocorre a mobilização semanal. O ambiente é pacato, familiar. Na retaguarda foi montada uma imensa tenda para acolher, entre outros, os mais velhos e os estropiados. No altifalante, uma voz recorda o sentido da mobilização: o direito ao retorno, a denúncia da Conferência do Bahrein na vertente económica do novo «plano de paz» americano, a unidade palestiniana. As bandeiras palestinianas, numerosas, oscilam ruidosamente ao vento. Não nos aproximaremos da zona, muito perigosa, onde se mantêm os jovens preparados para desafiar os atiradores de elite israelitas.
A ideia de uma concentração de massas em frente à barreira israelita nasceu no espírito de uns vinte jovens de Gaza. «Inspirámo-nos em acções do mesmo tipo levadas a cabo há vários anos na Palestina ou nos confins de Israel», relata Ahmad Abu Artema, um dos seus iniciadores. Este militante pacifista de 35 anos, de voz calma e monocórdica, é ele próprio oriundo de uma família expulsa de Ramla em 1948. «Através desta mobilização civil, o que estava em causa era reafirmar o direito ao retorno dos refugiados às suas terras, tal como foi determinado pelas resoluções da ONU, e exclamar alto e bom som a nossa sede de dignidade.» Muito rapidamente, as facções políticas juntaram-se ao movimento, com uma preocupação unitária, como que para esconjurar a discórdia entre os irmãos rivais do Hamas e da Fatah, que envenena o xadrez palestiniano. Para esta ocasião, os partidos recolhem as suas respectivas bandeiras e deram instruções para que só fosse brandida a bandeira da Palestina. «A questão dos refugiados resulta de um consenso nacional. É por isso normal que todas as facções tenham dado o seu apoio», explica-nos Ahmad Abu Artema. O Hamas, apesar de ser defensor da luta armada contra Israel, associou-se estreitamente a este movimento pacífico. Faz parte do seu comité de organização, ao lado de várias outras formações, como a Jihad Islâmica (islamo-nacionalista) ou a Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP, marxista). «A “grande marcha” é uma das outras opções que de que dispomos, além da via das armas, para fazer valer os nossos direitos perante a ocupação», diz-nos Ghazi Hamad. «Ela permite dar visibilidade à nossa causa.»
«Fomos exortados a recorrer à resistência pacífica…»
Supunha-se que o movimento duraria até 15 de Maio de 2018, mas desde então continuou. Outras reivindicações surgiram, como o levantamento do bloqueio ou a defesa de Jerusalém. Apesar do carácter não armado das concentrações, Israel decidiu responder-lhes abrindo fogo. Desde o início da mobilização civil, perderam a vida mais de duzentos gazenses, entre os quais cerca de cinquenta crianças, mas também socorristas e jornalistas. A este balanço junta-se a centena de palestinianos mortos num ano e meio no território durante bombardeamentos ou ataques israelitas. Em Fevereiro de 2019, uma comissão de inquérito das Nações Unidas concluiu que a violência cometida por Israel durante manifestações na orla fronteira de Gaza podia «constituir crimes de guerra ou crimes contra a humanidade» [9]. Acusações imediatamente varridas pelo primeiro-ministro israelita. Apontando o arremesso pelos contestatários de papagaios voadores e de balões incendiários sobre as terras israelitas meeiras, Benjamin Netanyahu retorquiu que Israel tinha de «proteger a sua soberania, bem como a dos seus cidadãos, e exercer o direito à autodefesa» [10]. Ele pode contar com o apoio da sua opinião pública: em Maio de 2018, quando se estava próximo da centena de mortos do lado palestiniano, uma sondagem indicava que 71% dos israelitas consideravam justificados os disparos contra os manifestantes da marcha [11].
Perante a dimensão das vítimas registadas entre os manifestantes e os danos materiais causados em território israelita por objectos incendiários, chovem críticas sobre os dirigentes palestinianos. A «comunidade internacional» e a comunicação social ocidental acusam as facções — e sobretudo o Hamas — de instrumentalizar os jovens e de os sacrificar aos atiradores de elite escondidos por trás da barreira. Khaled Al-Batch, líder da Jihad Islâmica em Gaza e membro do Comité Nacional da «Marcha do Retorno», rejeita estas acusações. «Exortaram-nos a utilizar a via da resistência pacífica, e foi o que nós fizemos através destas mobilizações», explica-nos ele. «E agora querem culpar-nos pelo elevado número de vítimas palestinianas! Os verdadeiros responsáveis não são condenados. Quem é que nos mata, quem é que mata os nossos filhos? São snipers aguerridos que sabem exactamente o que estão a fazer. Até agora, não há nenhum morto a lamentar do lado israelita durante estas manifestações. Por que é que ninguém sanciona Israel?» Maher Micher, dirigente da FPLP e membro do comité que organiza a marcha, com quem nos encontrámos na concentração de 14 de Junho de 2019 [12], rejeita também as acusações dos ocidentais. Para ele, este movimento tem dois méritos: «Por um lado, permite pressionar Israel, porque os danos causados nas terras das localidades israelitas por simples papagaios voadores incendiários levaram certos habitantes a partir; por outro, voltou a colocar a questão do direito ao retorno no xadrez internacional. É por isso que esta marcha tem de continuar». «Apesar dos feridos — o meu pai e o meu irmão foram eles próprios atingidos por balas —, a mobilização tem de continuar até recuperarmos os nossos direitos e as nossas terras», concorda Mohammed Challah, um empregado de 33 anos com quem nos cruzamos de raspão enquanto ele corre para a zona perigosa, contígua à barreira.
Fazem-se contudo ouvir vozes dissonantes, nomeadamente entre os jovens. Muitos já não vão à marcha, que consideram demasiado próxima do Hamas desde que a formação islamita decidiu enquadrá-la. «O Hamas chamou a si o movimento para se revalorizar e recuperar legitimidade numa altura em que está em refluxo», afirma Loai A., um militante dos direitos humanos com 26 anos de idade. Neste últimos anos, a estrela do «partido da resistência islâmica» perdeu brilho. Uma parte dos gazenses criticam a organização dirigida por Yahya Sinuar de não ter avaliado as necessidades sociais da população e de mergulhar no autoritarismo e no rigorismo moral.
Testemunho disso é a repressão do movimento de contestação popular lançado em Março último. Sob o lema Bidna na’ich» («Queremos viver»), milhares de pessoas marcharam em protesto contra o aumento dos preços e a degradação das condições de vida. Acusando o movimento de ser manipulado pela Fatah, o Hamas respondeu com o bastão, agredindo e detendo várias centenas de pessoas [13]. «Como é que querem que nós apoiemos a “grande marcha” quando o Hamas não faz nada por nós e ainda nos reprime?», pergunta-nos Loai A. Com um tom cheio de amargura. «Eu cá disse ao Hamas: “Eu aceito perder a minha perna, mas que isso sirva ao menos para alguma coisa, e para que em troca vocês cuidem de nós.” Muitos jovens só pensam em partir para o estrangeiro. O problema», acrescenta ele suspirando, «é que não podemos sair»…
Pode a Fatah proporcionar uma solução alternativa? Nada é mais certo, de tal forma a Autoridade Palestiniana de Mahmud Abbas, controlada pela Fatah, perdeu crédito aos olhos de muitos gazenses e junto de uma grande maioria de palestinianos da Cisjordânia. A política de conciliação levada a cabo com Israel durante os «processos de paz» fracassou, a colonização expandiu-se e a colaboração securitária entre a polícia da Autoridade e o exército israelita na Cisjordânia é rejeitada em massa pela opinião pública [14]. Sem contar com a corrupção que gangrenou as instituições quando a Fatah estava no poder em Gaza, estimulando o rancor em proveito de um Hamas considerado mais íntegro. «A situação com a Fatah não era realmente melhor», explica Fathi Sabah. «E na Cisjordânia, hoje, as coisas estão mal: Mahmud Abbas não faz nada contra os colonatos, não luta contra a ocupação, não defende Jerusalém… Não faz nada, à parte fazer discursos nas Nações Unidas.» Rejeitando em bloco a Fatah e o Hamas, um número crescente de gazenses faz apelo a mudanças políticas radicais, tal como os seus compatriotas da Cisjordânia, e exigem uma renovação geracional.
Uma prioridade: a reconciliação entre o Hamas e a Fatah
Neste contexto de crise generalizada, em que o bloqueio e o cerco sobrecarregam o futuro, muitos perderam a esperança. «Eu detesto Gaza, a minha infância foi destruída por três guerras e eu quero sair daqui», confidencia-nos Amira Al-Achcar, uma estudante de 18 anos que vive no campo de refugiados de Nusseirat com oito irmãos e irmãs e com a mãe, sozinha e sem emprego. «Todos os dias encontro pessoas extraordinárias, instruídas, que desejam a paz com os israelitas; mas estão no limite», testemunha por seu lado Matthias Schmale, director da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos (UNRWA) em Gaza, que escolariza perto de 280 mil crianças e fornece ajuda alimentar a mais de um milhão de pessoas no enclave. «É fácil compreender que alguns possam passar à violência quando vemos o tratamento que Israel inflige a todo um povo.»
Na ausência de avanços do lado israelita, e por falta de apoio internacional, nomeadamente da maior parte dos países árabes, a prioridade, para muitos, é a resolução do conflito entre a Fatah e o Hamas. A 12 de Outubro de 2017, os dois movimentos assinaram um acordo de reconciliação que deveria ter permitido o regresso da Autoridade Palestiniana à Faixa de Gaza. Mas o processo não avança, principalmente por causa das exigências de Abbas. O presidente da Autoridade exige, entre outras coisas, o desarmamento do Hamas, uma imposição categoricamente rejeitada pela formação islamita. Enquanto isso, «a população cai todos os dias um pouco mais na miséria e Gaza é uma bomba-relógio que ameaça explodir», considera Ahmad Yussef, figura influente do Hamas, favorável a uma solução de compromisso entre os dois partidos. A seu ver, «tem de se reconstruir a casa palestiniana para enfrentar melhor Telavive. E isso só pode ser feito através de um sistema de co-gestão do poder. Todos têm de fazer concessões». Imad Al-Agha, alto responsável da Fatah em Khan Yunés, tem um discurso semelhante: «Temos de pôr fim a esta discórdia, que só favorece Israel, e reunir as nossas forças». Um voto piedoso, para alguns; uma urgência absoluta, para outros.
Não poderá esta reconciliação ser feita sob os auspícios da juventude, tendo em vista elaborar uma nova estratégia nacional? Hassan Ostaz, militante da Fatah com 29 anos de idade, está convencido disso: «É preciso reconhecer que, hoje, só o Hamas resiste aos israelitas. Nós temos de ultrapassar as clivagens para reflectir sobre os meios de luta comum contra a ocupação. É o que estamos a tentar fazer, por exemplo organizando reuniões comuns com os jovens do Hamas». Mohammed Haniyeh, de 28 anos, é o representante da juventude do Hamas no comité que organiza a «grande marcha». Recebe-nos num escritório que partilha com… os jovens da Fatah. Também para ele, é chegado o momento de um sobressalto colectivo: «Nós temos de constituir, sem tardar, um governo de união, organizar novas eleições e trabalhar para construir o nosso Estado, da Cisjordânia a Gaza». Um Estado que nem sequer é considerado no «acordo do século» preparado por Washington e apoiado pelos países do Golfo. Este enésimo projecto de paz enterra, entre outras coisas, a ideia de uma Palestina independente e encara a Faixa de Gaza como uma entidade separada da Cisjordânia. «Uma brincadeira trágica», conclui Ahmad Yussef.
Notas
[1] Tzvi Joffre, «IAF attacks targets in Gaza strip after rocket fire», The Jerusalem Post, e «Israeli air force fires many missiles into Gaza», International Middle East Media Center (IMEMC), 14 de Junho de 2019.
[2] Ver o relatório anual do Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas (UNOCHA/OCHA), Nova Iorque, Maio de 2018, e Ali Adam, «Israel is intensifying its war on Gaza’s farmers», The New Arab, Londres, 19 de Março de 2018.
[3] Tom Miles, «UN bemoans unsustainable Palestinian economy», Reuters, 12 de Setembro de 2018.
[4] Cf. o relatório «Gaza in 2020: A liveable place?», Nações Unidas, Nova Iorque, Agosto de 2012.
[5] «Gaza ten years later», Nações Unidas, Julho de 2017.
[6] Todos estes dados estão disponíveis nos sítios do Banco Mundial, da CNUCED e do Gabinete Central de Estatísticas Palestiniano (PCBS).
[7] «Rapport sur l’assistance de la Cnuced au peuple palestinien», CNUCED, Genebra, 12 de Setembro de 2018.
[8] Ler Akram Belkaïd, «Al-Nakba», em «Palestine. Un peuple, une colonisation», Manière de voir, n.º 157, Fevereiro-Março de 2018.
[9] «Gaza: des enquêteurs de l’ONU suspectent Israël de crimes contre l’humanité lors des manifestations», ONU Info, 28 de Fevereiro de 2019, https://news.un.org.
[10] Tovah Lazaroff, «Netanyahu: UN set new hypocrisy record with Israeli war crimes allegation», The Jerusalem Post, 28 de Fevereiro de 2019.
[11] Cf. «The peace index», 2 de Maio de 2018, http://peaceindex.org/defaulteng.aspx.
[12] Nesse dia viriam a ser feridos na Faixa de Gaza mais de noventa palestinianos, entre os quais vinte e oito crianças e quatro socorristas.
[13] Entsar Abu Jahal, «Human rights group documents Hamas abuses», Al-Monitor, 26 de Abril de 2019, www.al-monitor.com.
[14] Sobre a cooperação securitária, ler «Na Cisjordânia, o espectro da Intifada», Le Monde diplomatique — edição portuguesa, Outubro de 2014.