Entrevista a Adoración Guamán, professora de Direito do Trabalho e da
Segurança Social na Universidade de Valência, que publicou recentemente o
livro “TTIP: O assalto das multinacionais à democracia”.
"Adoración Guamán é uma dessas figuras, que tanto nas universidades, como
nos movimentos sociais, está a contribuir para a tarefa indispensável
da divulgação das ameaças para as pessoas e para os povos do Tratado
Transatlântico de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla inglesa), que
está a ser negociado entre a União Europeia e os Estados Unidos.
Professora titular de Direito do Trabalho e da Segurança Social na
Universidade de Valência, é directora da Fundação para a Europa dos
Cidadãos e publicou recentemente, com a editora Akal, o livro “TTIP: o
assalto das multinacionais à democracia”. Conversámos com ela em Bilbau,
no âmbito da sua participação na décima edição do curso que todos os
anos, nesta época, a OMAL organiza, em colaboração com a Universidade do
País Basco."
Adoración Guamán foi entrevistada por Gorka Martija para o La Marea. Gorka Martija é investigador do Observatorio de Multinacionales en América Latina (OMAL) – Paz con Dignidad. Reproduzimos aqui a tradução publicada pela "Plataforma não ao TTIP"
O caso grego deixou claro que a UE é, ela própria,
uma arquitectura especificamente concebida para proteger o modelo
neoliberal e a prevalência dos grandes poderes transnacionais. Neste
contexto, o que se pode esperarar do TTIP?
O TTIP vai aprofundar esta arquitectura. A erosão do modelo social,
que provocaram as medidas de construção do mercado interno europeu e a
União Económica e Monetária, agudizou-se a partir da crise de 2008, com
uma série de medidas que de facto acabaram por intervir na capacidade
dos Estados-membros de determinarem as suas políticas sociais e
laborais. Portanto, a sua capacidade de tomar decisões políticas será
muito restrita. E o caso grego revelou o poder da UE para impedir um
governo de realizar o programa no qual os cidadãos votaram.
A UE deu um novo salto para a frente, reflectido no relatório dos
cinco presidentes, que se consubstancia em mais presença no exterior,
mais política comercial e mais união económica no seu interior. Neste
sentido, vão-se aprofundar as políticas de governação económica, que são
as que estão a levar os Estados-membros à situação actual de
intervenção em matéria laboral, dinâmica que vai aderir à lógica do
TTIP. Assim, vamos ter duas vias de pressão: a supranacional por um
lado, com mecanismos como o ISDS (mecanismo de arbitragem de diferendos
investidor-Estado), ou o Conselho de Cooperação Reguladora, que vai
“americanizando” os direitos laborais; por outro, a manutenção da
pressão da UE, sobre os Estados-membros.
Que certezas existem, em estudos encomendados nos
últimos anos pela Comissão Europeia, que falam num previsível aumento do
PIB e dos lucros empresariais, como consequência da entrada em vigor do
TTIP? E sobre os custos sociais, que não são abordados nos estudos?
Quando a Comissão viu que se articulava uma certa resistência ao
TTIP, encomendou vários estudos que continham declarações em como o PIB
da UE aumentaria 119 mil milhões por ano, 0,5% mais em cada ano. O
próprio ex-comissário do Comércio disse que os números lhe pareciam
irreais. A Comissão também tem recebido numerosas críticas de
especialistas, que assinalam que os modelos económicos se baseiam em
expectativas fictícias, que não têm em conta os custos sociais ou as
externalidades negativas, que pode ter este tratado. Um estudo de
Jeronim Capaldo, de 2014, afirma que se vai produzir uma redução das
exportações líquidas (mais de 2% do PIB), principalmente da França,
Alemanha e Reino Unido; uma diminuição dos lucros do trabalho até 5.000
euros em França e 3.400 na Alemanha; uma perda clara de postos de
trabalho que se concentraria no sul da Europa. O que é a própria
Comissão a reconhecer é que poderia haver uma deslocamento das empresas,
que poderia afectar a mão-de-obra.
Os efeitos sociais do TTIP podem resumir-se na comparação com outras
experiências de integração supranacional como a própria UE, que deu
origem a processos de dumping social e levou a uma redução das
normas laborais. Numa integração em que se vai reunir a circulação de
factores económicos de dois subsistemas sociais tão diferentes, é mais
do que provável que esses fenómenos se multipliquem. E tudo parece
indicar que, como já aconteceu com o NAFTA – sigla do Acordo de Livre
Comércio Norte-Americano, em inglês – que inclui os EUA, Canadá e México
e entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1994, não podemos falar de um dano
específico para os EUA ou para a UE entendidos como blocos antagónicos,
mas que são as classes trabalhadoras e populares de ambos os lados do
Atlântico, que vão sofrer as consequências de maneira transversal,
frente ao capital financeiro transnacionalizado e às multinacionais.
Falando de NAFTA: sempre foi considerado como o
paradigma fundaçional da arquitectura contemporânea dos acordos
comerciais, dominante na cena internacional. Poderia ele, fornecer uma
breve perspectiva, comparado com o TTIP?
O NAFTA tem servido como um padrão, que, aperfeiçoado, levou ao CETA
(Acordo Integral de Economia e Comércio), assinado em Setembro de 2014
pela UE e Canadá e que aguarda aprovação para entrada em vigor – ao TTIP
e a outros tratados bilaterais ou regionais. Quando a administração
Clinton promoveu o NAFTA, esgrimiam-se razões muito similares às que
agora Obama está a utilizar: criação de postos de trabalho, aumento de
investimentos, crescimento do PIB, etc.
Todas estas previsões se revelaram falsas.
Centrando-nos no México, alguns indicadores dos anos 60 a 80 do
século passado, mostram como o PIB real por pessoa duplicou, e, no
entanto, nos últimos 20 anos o seu crescimento é inferior a 20%.
Portanto, houve uma desacelaração brutal, quando a taxa de crescimento
no resto da América Latina, particularmente na América do Sul, foi muito
maior. E os salários reais no México, em 2012, eram basicamente o mesmo
que em 94; note-se ainda que o desemprego aumentou quase 3 pontos
percentuais.
Ao mesmo tempo, nos EUA, houve uma redução de postos de
trabalho, uma vez que muitas empresas acabaram por se deslocalizar para o
México. E também, por meio de procedimentos de convergência reguladora,
houve repercussões tanto para o México como para o Canadá, em relação
aos sistemas de saúde e protecção social. Ou seja, o NAFTA expressa
claramente, como os efeitos preversos são transversais e os ganhos
esgrimidos, não ocorreram.
Na sua trajectória, destacam-se as linhas de
investigação relacionadas com as relações de trabalho. Que impactos se
prevêem, sobre os direitos individuais e colectivos, a este respeito?
Há que começar desmentindo uma das principais premissas sobre a qual
assenta o TTIP: a existência de valores partilhados, baseados numa
aspiração social alta e em norma sociais e laborais que nos diferenciam
do resto do mundo. Isto não é assim.
Em primeiro lugar, as normas de trabalho para a UE são o resultado de
um pacto capital-trabalho, necessário para alcançar essa igualdade
material que está no coração dos estados sociais, ou estavam no seu de
início, enquanto que para os EUA pode ser um obstáculo à livre
concorrência do mercado. Há uma abordagem diferente à partida que mostra
que a construção das normas sociais tem um enfoque ideológico
claramente diferenciado que levam a diferentes quadros regulamentares.
Nos EUA há um nível muito reduzido de regulamentação laboral, tanto em
termos de regulação legal, como de contractos colectivos. A protecção
individual do trabalhador face à empresa é reduzida, enquanto que nos
nossos sistemas laborais, o direito do trabalho tem uma inclinação
protectora. E quanto aos direitos sindicais, a diferença é enorme: os
EUA não ratificaram as duas convenções fundamentais em matéria sindical,
enquanto que os 28 estados da UE o fizeram. Os EUA permitem as práticas
anti-sindicais, anti-greve e de restricção à negociação colectiva,
enquanto que na UE, além de se contemplarem todos estes direitos na
Carta de Direitos Sociais Fundamentais, eles estão incluídos nas
constituições dos Estados, como uma parte fundamental das mesmas..
Portanto, há uma diferença substancial.
Os EUA já disseram que não vão ratificar as duas convenções
fundamentais sobre assuntos sindicais. Assim, há um risco evidente de
produção de fenómenos de dumping social e de “nivelamento por
baixo”. A isto, junta-se a previsão de mecanismos como o ISDS que, como
ficou demonstrado no caso de Veolia contra o Egito, podem até
considerar, que um aumento do salário mínimo, é uma ação do Estado,
prejudicial ao potencial de lucro de um investidor e que por isso, pode
ser condenada.
Visto isto, o que acha que é o verdadeiro objectivo da TTIP?
O objetivo é aprofundar a desregulamentação. Enquanto que a UE está
numa dinâmica de orientar os Estados-membros para re-regular as suas
normas laborais, através de uma reforma laboral, de pensões, etc., o
passo a seguir, que pressupõe o TTIP, pretende incidir na
desregulamentação sobre elementos como barreiras alfandegárias e
cooperação reguladora. Destina-se a reduzir o que chamam de “burocracia”
ou “cargas”, que são, em muitos casos, direitos sociais, ambientais, ou
sanitários.
É por isso que há um forte interesse por parte das empresas
transnacionais na ampliação do capítulo da cooperação reguladora. Num
primeiro esboço, previa-se inclusivamente uma cláusula, através da qual o
Conselho de Cooperação Reguladora teria autoridade para modificar o
próprio TTIP no futuro, mas foi retirada. Em qualquer caso, o TTIP é um living agreement, um
acordo vivo, que irá permitir a este Conselho de Cooperação Reguladora
continuar a disciplinar os processos legislativos dos Estados membros.
O
TTIP trata de desregular e de controlar a capacidade dos
Estados-membros de reverter privatizações, promover nacionalizações,
etc. Ou seja, vai ter um efeito de congelação sobre os serviços públicos
e um efeito desregulamentador sobre as normas laborais. Supõe por isso o
lucro, sobre todos os pontos de vista, para as multinacionais, que, por
um lado controlam os poderes públicos, para que não afectem os seus
investimentos e, por outro, incentivam a desregulamentação permanente, sotto voce, que vem dessas instâncias, supranacionais.
Perante esta situação, está optimista sobre as possibilidades de parar o TTIP?
Sim. No sentido em que em torno do TTIP, se está a politizar tudo o
que tem a ver com as empresas multinacionais e comércio internacional,
que teve o seu momento de contestação há anos, com a luta contra o AMI
(Acordo Multilateral de Investimentos), o movimento antiglobalização
etc., e que pareciam matérias actualmente esquecidas, quando na
realidade deveríamos colocar o foco sobre elas, porque constituem o
perigo fundamental que ameaça as nossas democracias na actualidade.
O
TTIP está a obrigar a que a cidadania fale sobre a política comercial, e
que se gere uma rejeição. E esta rejeição está a ser, além disso,
transversal e interclassista, ao ter-se identificado um inimigo comum
das grandes maiorias sociais, que vão desde motoristas de táxi a
militantes de sindicatos, passando por movimentos sociais e ambientais
e, portanto, está a reunir maiorias. Este potencial aglutinador do TTIP,
pode levar-nos a reorganizar a mobilização e a politizar novas áreas de
actuação social.
Nestas circunstâncias considero que é difícil, uma rápida aprovação
do TTIP. E, a longo prazo, acho que se continuar a mobilização social e
não se conseguir aprovar durante a administração Obama, dificilmente
chegará a bom porto. Também estão a Grécia, Corbyn, as vozes contra no
parlamento alemão, ou no governo francês. Pouco a pouco e de modo
descontínuo, mas evidente, estão-se a ouvir as vozes dissidentes quanto à
finalidade do tratado, quer seja de posições mais críticas ou mais
reformistas. Está-se a proceder, em última análise, a um questionamento
de muitos sectores, o que compromete esta aprovação, considerando que
entretanto têm que ser aprovados o TPP ou o CETA.
Além do mais, isto está a fazer publicidade a outras alternativas que
têm vindo a gerar-se na sociedade civil, como o Tratado Internacional
dos Povos para o controle das empresas transnacionais ou a arquitectura
alternativa que está a ser construída na América Latina e que está a ser
cada vez mais partilhada entre diferentes movimentos sociais, como uma
alternativa real. O TTIP está a permitir a viabilização de outras
maneiras de integrar economias, priorizando direitos sobre lucros
empresariais e organizando maneiras de dizer não aos tratados de
comércio e investimento, não ao TTIP."
Esta entrevista foi publicada originalmente a 4/12/12 em La Marea. A tradução aqui reproduzida foi publicada no mesmo dia pela "Plataforma não ao TTIP".