Sucede que tenho precisamente aquelas qualidades que são negativas
para fins de influir, de qualquer modo que seja, na generalidade de um
ambiente social. Sou, em primeiro lugar, um raciocinador, e, o que é
pior, um raciocinador minucioso e analítico. Ora o público não é capaz
de seguir um raciocínio, e o público não é capaz de prestar atenção a
uma análise.
Sou, em segundo lugar, um analisador que busca, quanto em
si cabe, descobrir a verdade. Ora o público não quer a verdade, mas a
mentira que mais lhe agrade. Acresce que a verdade — em tudo, e mormente
em coisas sociais — é sempre complexa. Ora o público não compreende
ideias complexas. É preciso dar-lhe só ideias simples, generalidades
vagas, isto é, mentiras, ainda que partindo de verdades; pois dar como
simples o que é complexo, dar sem distinção o que cumpre distinguir, ser
geral onde importa particularizar, para definir, e ser vago em matéria
onde o que vale é a precisão — tudo isto importa em mentir.
Sou, em terceiro lugar, e por isso mesmo que busco a
verdade, tão imparcial quanto em mim cabe ser. Ora o público, movido
intimamente por sentimentos e não por ideias, é organicamente parcial.
Não só portanto lhe desagrada ou não interessa, por estranho à sua
índole, o mesmo tom da imparcialidade, mas ainda mais o agrava o que de
concessões, de restrições, de distinções é preciso usar para ser
imparcial. Entre nós, por exemplo, e em a maioria dos povos do sul de
Europa, ou se é católico, ou se é anti-católico, ou se é indiferente ao
catolicismo, porque a tudo. Se eu, portanto, fizesse um estudo sobre o
catolicismo, onde forçosamente teria que dizer mal e bem, que apontar
vantagens misturadas com desvantagens, que indicar defeitos aliviados
por virtudes, que me sucederia?
Não me escutariam os católicos, que não
aceitariam o que eu dissesse de mal do catolicismo. Não me escutariam os
anti-católicos, que não aceitariam o que eu lhes dissesse de bem. Não
me escutariam os indiferentes, para quem todo o assunto não passaria de
uma maçadoria ilegível. Assim resultaria inútil esse meu estudo, por
cuidado e escrupuloso que fosse — direi, até, tanto mais inútil, porque
tanto menos aceitável ao público, quanto mais fosse cuidado e
escrupuloso.
Seria, quando muito, apreciado por um ou outro indivíduo de
índole semelhante à minha, raciocinador sem tradições
nem ideais, analisador sem preconceitos, liberal
porque liberto e não porque servo da ideia inaplicada da liberdade. A
esse, porém, que teria eu que ensinar? Quando muito, certas coisas
particulares sobre o catolicismo, na hipótese que me serviu de exemplo, e
no caso de lhe ser a ele estranho o assunto. E se a ele, perscrutador
cultural como eu, o assunto é estranho, é que nunca o interessou; se
nunca o interessou, para que vai ler o que escrevi sobre ele?
De aqui parece dever concluir-se que um estudo
raciocinado, imparcial, cientificamente conduzido, de qualquer assunto é
um trabalho socialmente inútil. Assim de facto é. É, quando muito, uma
obra de arte, e mais nada.
Vox et preterea nihil.
As sociedades são conduzidas por agitadores de sentimentos, não por
agitadores de ideias. Nenhum filósofo fez caminho senão porque serviu,
em todo ou em parte, uma religião, uma política ou outro qualquer modo
social do sentimento.
Se a obra de investigação, em matéria social, é portanto socialmente
inútil, salvo como arte e no que contiver de arte, mais vale empregar o
que em nós haja de esforço em fazer arte, do que em fazer meia-arte.
Reconhecendo que todas as doutrinas são defensáveis, e que valem, não
por o que valem, senão pela valia do defensor, concentrar-nos-emos mais
na literatura das defensivas do que no assunto delas. Faremos contos
intelectuais onde, pelo primeiro e imprudente impulso, faríamos estudos
científicos. Ser-nos-á indiferente a verdade da ideia: em si mesma; não é
mais que a matéria para um belo argumento, para as elegâncias e as
astúcias da subtileza.
Timbraremos, por um movimento idêntico em sentido inverso, em mostrar
a parvoíce das ideias aceites, a vileza dos ideais nobres, a ilusão de
tudo quanto o povo crê ou pode crer. Salvaremos assim o princípio
aristocrático, que na ordem social se afundou, deixando atrás de si o
vácuo de uma universal, monótona escravidão.
Seremos dissolventes? Como dissolventes, se não temos acção sobre o
público, se nos não lêem senão os que lêem arte pela arte, arte
intelectual, arte feita com ideias em vez de ritmos, e esses,
pequeníssimo número humano, ou estão já dissolvidos, ou são fortes,
pela. inteligência e a cultura, contra toda a dissolução?
Dissolvente, socialmente, é a doutrina social do que não está. Foi
dissolvente e anti-social, no sentido de prejudicar a ordem e a harmonia
dos povos, o cristianismo quando o paganismo era a civilização. Foi
dissolvente e anti-social a Reforma, quando a civilização de Europa era
católica. Foi dissolvente e anti-social a doutrina da Revolução
Francesa, quando a civilização da Europa era o Antigo Regime. São hoje
dissolventes todas as doutrinas sociais que reagem contra as dessa mesma
Revolução. Quem hoje prega a sindicação, o estado corporativo, a
tirania social, seja fascismo ou comunismo, está dissolvendo a
civilização europeia; quem defende a democracia e o liberalismo a está
defendendo.
Quer isto dizer que não há doutrinas dissolventes senão por sua
situação ocasional? Quer dizer isso mesmo. A mais «radical» das
doutrinas, desde que seja universalmente aceite, é uma doutrina
conservadora; a mais «conservadora», se nessa altura se opuser àquela,
será radical.
Quer isto dizer que não há princípios fundamentais na vida das
sociedades? Não quer dizer isso; quer porém dizer que, se os há, nós os
não conhecemos. Não há ciência social, não sabemos como nascem, como se
conservam ou não conservam, como crescem ou decrescem, como se estiolam
ou morrem, as sociedades. A existência da humanidade, se por ela se
entende qualquer coisa mais que a espécie animal chamada homem, é tão
hipotética e racionalmente indemonstrável como a existência de Deus. Se,
porém, por humanidade, se entende a espécie animal chamada homem, então
existe para os biologistas, para os médicos — para todos quantos
estudam, de um modo ou de outro, o corpo humano; existe como existem os
peixes e as aves, e mais nada.
Que princípio social se pode erigir em fundamental? Todos e nenhum,
conforme a habilidade do argumentador. Há períodos de ordem que o são de
estagnação, como a longa vida morta de Bizâncio. Há-os que são «de
actividade intelectual, como os da Antiga Monarquia francesa. Há
períodos de desordem que são a ruína intelectual dos países em que se
dão, como o Império Romano em declínio, ou a época da Revolução
Francesa, propriamente dita. Há períodos de desordem fecundos em
produção intelectual, como o da Renascença nas repúblicas italianas,
como o que abrange o tempo de Isabel e de Cromwell em Inglaterra.
Refiro-me à produção intelectual, supondo-a uma vantagem, e, ao
menos, parte da civilização. Não insisto nisso, porém, e posso aceitar a
doutrina de que a cultura e a arte são um mal, de que é paz e não
sonetos o que mais importa à humanidade. Mas quais são as circunstâncias
que produzem a paz, quais as que a não produzem? Encontraremos as
mesmas causas dando diferentes efeitos, ou, melhor, encontraremos as
mesmas circunstâncias com diferentes resultados — o que quer dizer que
não são causas, mas coincidências, que qualquer coisa que se considera
uma vantagem social, seja uma sinfonia ou o jantar certo, pode aparecer
em circunstâncias sociais diferentes, sem que saibamos nunca de onde
veio a sinfonia, porque é que se conseguiu que o jantar não faltasse.
Acresce que, assim como não há ciência social, assim também não há
arte social, finalidade certa da existência das sociedades. Aqui o
problema, que era semelhante ao da metafísica, torna-se metafísica
mesmo. Para que fim existem as sociedades? Para fazer a felicidade dos
que as compõem? Não o sabemos, e o certo é que a felicidade varia de
tipo de homem para homem, e há muitos que de bom grado perderiam a
mulher, desde que não percam a colecção de selos. (...)
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa