O importante Tratado de Lisboa, assinado em 2007, mexe na relação de poder entre estados e União Europeia, e como todas as decisões que interferem com poderes politicos ou económicos, foi imposto aos portugueses sem qualquer tipo de discussão pública ou sufrágio popular.
Foi-nos
sugerido por um leitor que falassemos do Tratado de Lisboa. Queixava-se
da ignorância pública em relação a este tratado. E de facto,
percorrendo o google, percebe-se que quase nada foi publicado analisando
este tratado.
Encontramos no entanto alguns artigos que merecem ser lidos, em sites como o JanusOnline, SciElo, Escola de Governo ou no Asseri. Poderemos actualizar esta lista a partir de sugestões futuras vossas. Porém existe um artigo de Ilda Figueiredo, que data de 2008, que vimos postado em várias publicações que gostaríamos aqui de disponibilizar na integra :
Razões contra o «Tratado de Lisboa»
por Ilda Figueiredo
Está a decorrer o processo de ratificação do Tratado da União Europeia,
assinado em Lisboa a 13 de Dezembro de 2007 pelos Chefes de Estado ou
de Governo dos 27 Estados que são membros da União Europeia.
Este processo está a ser realizado exclusivamente por via parlamentar, o
que terá resultado de um compromisso assumido ainda durante a
Presidência da Alemanha, quando foi estabelecido o acordo quanto à
retoma da dita constituição europeia, envolvendo também o conteúdo do
novo Tratado, o calendário para a sua aprovação e a metodologia a
seguir, visando a sua entrada em vigor antes das eleições para o
Parlamento Europeu, em Junho de 2009 (1) . Até ao momento, julga-se que só a Irlanda irá recorrer a um referendo por imperativos constitucionais.
A fuga ao referendo
Esta fuga ao referendo, utilizando os mais variados pretextos, revela o
receio das consequências do voto dos cidadãos em Portugal e nos outros
países da União Europeia. Sabem que o conteúdo do «Tratado de Lisboa» é a
cópia da dita constituição europeia, a que mudaram o nome apenas para
tentar ludibriar os cidadãos perante aquilo que é uma autêntica fraude
política. É que esse projecto de Tratado Constitucional devia ter sido
abandonado, tendo em conta os resultados dos referendos na França e na
Holanda, em 2005. Basta que um Estado-membro não ratifique um Tratado
para que ele não possa entrar em vigor.
Agora, querem evitar a repetição de uma situação idêntica e o possível
efeito dominó que teria o referendo em qualquer outro país para além da
Irlanda. Receiam sobretudo o Reino Unido, onde o resultado do referendo
poderia ser negativo, o que bastaria para impedir a entrada em vigor do
novo Tratado da União Europeia.
Em Portugal, a fuga ao referendo sobre o «Tratado de Lisboa», além de
ser mais uma promessa não cumprida do PS, no que foi acompanhado pelo
PSD, não teve em conta a última revisão constitucional, a qual foi
expressamente realizada para ser possível o referendo ao Tratado, que na
época se chamava Tratado Constitucional e agora querem que seja
«Tratado de Lisboa», mas onde se pode constatar que, com excepção do
nome e dos símbolos, as diferenças são mínimas. Mas até sobre isso há
uma Declaração anexa ao Tratado com vários países a declararem que vão
continuar a utilizar esses símbolos, entre os quais se encontra
Portugal.
O aprofundamento do neoliberalismo
Este novo Tratado não devolve soberania aos Estados-membros e não
inverte o processo de aproximação da União Europeia a um modelo
neoliberal de capitalismo. Pelo contrário. Afecta a soberania do país em
pontos centrais, aprofunda o centralismo das decisões em torno dos seis
maiores países (Alemanha, França, Itália, Reino Unido, Polónia e
Espanha), aprofunda o neoliberalismo e reduz ao mínimo os direitos
sociais, dando resposta às reivindicações do capital europeu.
Este Tratado mantém todos os aspectos negativos das políticas
neoliberais que já conhecemos, e agrava-as, dando-lhes uma visão ainda
mais liberal, com os protocolos que são parte integrante do próprio
Tratado, seja sobre a política de concorrência que «não deve ser
falseada», expressão que também constava da dita constituição europeia,
seja sobre os chamados Serviços de Interesse Económico Geral. A leitura
conjunta destes artigos só pode ter uma interpretação: sujeitar a
maioria dos serviços públicos à política de concorrência e ao mercado
interno, ou seja, facilitar a vida aos grupos privados que querem
apropriar-se da generalidade dos serviços públicos, aprofundando o que
está a acontecer com as liberalizações nos transportes, correios,
energia, telecomunicações, serviços financeiros, etc.
Aí aparecem também, a propósito do Artigo 104.º do Tratado, relativo ao
funcionamento da União Europeia, as declarações da Conferência
Intergovernamental sobre a Estratégia de Lisboa e o Pacto de
Estabilidade, insistindo nas políticas que estão a ser praticadas, com
as consequências conhecidas. Sabemos o que significa controlo do défice
orçamental: corte nos salários reais e nas pensões e reformas, menores
investimentos públicos, incluindo na saúde e educação públicas, mais
liberalizações/privatizações, com maiores ganhos para grupos económicos
privados, e as graves consequências visíveis no desemprego, o qual
alimenta o trabalho precário e os baixos salários.
Igualmente, a propósito da política monetária, não só se mantêm os
poderes conferidos ao Banco Central Europeu, como se admite que se possa
ir mais longe, «conferindo-lhe atribuições específicas no que diz
respeito às políticas relativas à supervisão prudencial das instituições
de crédito e outras instituições financeiras, com excepção das empresas
de seguros». (2)
O ataque aos direitos dos trabalhadores
O reforço dos caminhos cada vez mais neoliberais da União Europeia está
intimamente associado ao ataque aos direitos laborais. Aliás, a
Estratégia de Lisboa defende também a flexibilidade laboral, de que já
conhecemos a flexigurança à portuguesa (Livro Branco sobre o direito do
trabalho, as alterações ao Código de Trabalho, alterações do estatuto
dos trabalhadores da função pública, dos professores, etc.). Estão em
causa, designadamente, a contratação colectiva, a proibição de
despedimentos sem justa causa, a segurança do vínculo laboral, a
participação democrática, os salários e os horários de trabalho.
Nesta fase, importa recordar que toda a luta contra a famigerada
directiva Bolkestein se fez durante a tentativa de ratificação do
Tratado Constitucional e isso contribuiu para uma maior compreensão dos
cidadãos franceses do que pretendiam com o tal tratado, e que resultou
na sua recusa no referendo de 2005, na França.
A verdade é que, mesmo com os recuos a que foram obrigados, a directiva
de liberalização dos serviços acabou por ser aprovada e, recentemente, o
Tribunal de Justiça Europeu, em nome da liberdade de estabelecimento,
adoptou decisões contra sindicatos da Suécia e da Finlândia, nos
célebres casos das empresas Laval/Vaxholm e Viking Line, que remontam a
2004. Recorde-se que o caso Laval, uma empresa da Letónia encarregada da
construção de uma escola na cidade de Vaxholm, na Suécia, recusou-se a
aplicar uma convenção colectiva aplicada neste país.
Desta forma, para quem tivesse dúvidas do que se pretende com a
liberalização dos serviços, através da directiva Bolkestein e outras
propostas legislativas que se anunciam, estas decisões da instância
superior de justiça comunitária clarificam que o seu objectivo central é
defender a todo o custo a liberdade das empresas sobrepondo-a à
liberdade dos trabalhadores se organizarem, defenderem os salários e
outros direitos conquistados.
Em Dezembro de 2007, com o projecto de Tratado da União Europeia,
assinado em 13 de Dezembro em Lisboa, o Tribunal de Justiça Europeu já
não teve dúvidas. E decidiu contra os sindicatos e os trabalhadores
suecos, sobrepondo a liberdade de estabelecimentos das empresas
estrangeiras à liberdade dos trabalhadores e dos seus sindicatos lutarem
pelos seus direitos, designadamente salariais.
É que o «Tratado de Lisboa», seguindo o derrotado Tratado
Constitucional, afirma, no protocolo relativo ao mercado interno e à
concorrência, que «o mercado interno, tal como estabelecido no artigo
2.º do Tratado da União Europeia, inclui um sistema que assegura que a
concorrência não seja falseada». Assim, pode-se ver que a interpretação
da directiva sobre o mercado interno dos serviços que os magistrados do
Tribunal de Justiça Europeu fazem é a que dá todo o poder aos grupos
económicos, considerando que os trabalhadores destacados de empresas
estrangeiras apenas podem ficar vinculados aos mínimos legais e não aos
acordos colectivos do sector e do país para onde vão trabalhar. Na
prática, colocam os trabalhadores dos diferentes países da União
Europeia em concorrência entre si, contribuindo para a diminuição dos
salários e outros direitos laborais.
Esta decisão inadmissível assume particular gravidade no actual contexto
do «Tratado de Lisboa», que aprofunda a aplicação de mínimos legais
inscritos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Carta
esta que é uma grave restrição de direitos quando comparada com a
Constituição da República Portuguesa e até a própria Carta Social
Europeia do Conselho da Europa.
O fim da igualdade entre Estados
O que restava do princípio da igualdade de direitos entre Estados
soberanos que faziam parte da União Europeia é agora completamente
desmantelado, como se pode ver nas alterações da organização do poder da
União Europeia, na criação da sua personalidade jurídica e na forma
como serão tomadas as decisões, seja no Conselho, seja no Parlamento
Europeu. Há quem considere que querem transformar o nosso País numa mera
região administrativa da Europa, como João Ferreira do Amaral, que
considera não haver qualquer argumento válido de coerência ou eficiência
para justificar a redução de Comissários, a alteração do método de
decisão ou o fim das presidências rotativas. Afirma que «existe sim é a
vontade dos grandes países de anularem o poder dos pequenos ou médios» (3) .
Na verdade, a inscrição de um novo artigo que dá à União Europeia
personalidade jurídica, tal como pretendia a dita constituição europeia,
lança as bases para a criação de um super-Estado, de que são indícios a
criação do Presidente do Conselho Europeu, pondo fim às presidências
rotativas, o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e
a Política de Segurança, a quem se atribui a condução da política
externa e de segurança comum da União, o fim de pelo menos um Comissário
por país na Comissão Europeia, a que se junta a passagem de dezenas de
decisões, até agora tomadas por unanimidade, para uma simples maioria
qualificada (55% dos Estados e 65% da população), o que dá aos grandes
países um papel determinante.
É a afirmação do directório das grandes potências, que, aliás, já
assumem esse papel sem que se torne um escândalo comunitário, como
aconteceu recentemente, a propósito da crise financeira americana, com a
reunião dos líderes da Alemanha, França, Reino Unido e Itália, a que se
juntou o Presidente da Comissão Europeia, mas só depois de este o
reivindicar.
Por isso, na prática, Portugal já pouco conta e os líderes
governamentais portugueses também não se incomodam com isso. Mas, no
futuro, tenderá a ser pior, com o menor peso no Conselho, onde a regra
da votação é a maioria, alargando a co-decisão com o Parlamento Europeu
(onde seis potências terão a maioria dos deputados e Portugal perderá
dois), perdendo-se também o direito a um Comissário permanente.
Para Portugal, esta situação é particularmente grave, tendo em conta a
revisão constitucional de 2004, onde, numa atitude de inadmissível e
vergonhoso demissionismo, os deputados do PS, do PSD e do CDS/PP
admitiram que as normas comunitárias prevalecem sobre qualquer direito
interno português.
Mais centralismo, menos soberania e menos democracia
Seguindo a par e passo o que propunha a dita constituição europeia, o
«Tratado de Lisboa» dá à União Europeia competência exclusiva em várias
domínios, que inclui o estabelecimento das regras de concorrência
necessárias ao funcionamento do mercado interno e a conservação dos
recursos biológicos do mar no âmbito da política comum de pescas, além,
claro está, da política comercial comum, da União Aduaneira, da política
monetária para os Estados-membros cuja moeda seja o euro (4)
, de acordos internacionais, abrindo caminho a cooperações reforçadas,
designadamente nas áreas da segurança e política externa.
Prevê também competências partilhadas em áreas que afectam o quotidiano
das pessoas, designadamente: mercado interno, política social, coesão,
agricultura e pescas, ambiente, defesa dos consumidores, transportes,
energia, espaço de liberdade, segurança e justiça, etc. Estas
competências partilhadas estão subordinadas às orientações da política
de concorrência, como se prevê no protocolo onde se afirma que «o
mercado interno inclui um sistema que assegura que a concorrência não
seja falseada», o que visa dificultar a defesa dos serviços públicos,
das micro e pequenas e médias empresas, da economia social e dos
trabalhadores.
O empobrecimento da democracia também é visível na inclusão de uma
restrita Carta dos Direitos Fundamentais, sujeitando-a a uma leitura
ainda mais restrita através de anotações diversas, tendo por base as que
constavam do relatório de Giscard D’Estaing sobre os trabalhos da
Convenção que aprovou a dita constituição europeia. São direitos que
ficam a quilómetros de distância da Constituição da República Portuguesa
e, mesmo, da Carta Europeia dos Direitos Sociais, aprovada pelo
Conselho da Europa.
De igual forma, o papel dos Parlamentos nacionais, embora seja referido
no texto do Tratado, essa referência acontece num quadro de menor
capacidade de defesa dos interesses portugueses, por haver mais
competências nos órgãos da União Europeia. Até Mota Amaral, antigo
Presidente da Assembleia da República, reconhece que «os Parlamentos
nacionais não alcançam no «Tratado de Lisboa» todo o reconhecimento que
lhes seria devido como instituições de pleno direito da União». (5)
O que o «Tratado de Lisboa» faz é reforçar poderes da Comissão e do
Parlamento Europeu à custa dos Parlamentos Nacionais, que ficam
remetidos para a fiscalização prévia do princípio da subsidiariedade no
processo de elaboração das normas europeias. Com este Tratado da União
Europeia tenderão a caminhar para meros Parlamentos Regionais Portanto,
com este Tratado da União Europeia tenderão a caminhar para meros
Parlamentos Regionais.
No nosso caso da Assembleia da República esta perde poder de decisão
própria em áreas fundamentais, aumentando apenas a sua intervenção como
órgão consultivo, mas sem direito de veto das decisões comunitárias de
que discorde. Só em casos muito hipotéticos e excepcionais, e sempre em
conjunto com outros Parlamentos Nacionais, é que poderá criar alguma
dificuldade à Comissão Europeia, atrasando o processo legislativo.
Mais militarismo e menos autonomia
A criação dos novos cargos (Presidente do Conselho e Alto Representante
da União para os negócios estrangeiros e política de segurança), que
reduz a visibilidade e rebaixa o estatuto internacional dos pequenos e
médios países em relação ao exterior da União, é acompanhada de novos
artigos sobre política comum de segurança e de defesa.
Aí se prevê, designadamente, que os Estados-membros coloquem à
disposição da União capacidades civis e militares de modo a contribuir
para os objectivos definidos pelo Conselho, comprometendo-se a melhorar
progressivamente as suas capacidades militares, cabendo à Agência
Europeia de Defesa identificar as necessidades operacionais, promover as
medidas necessárias para as satisfazer, contribuir para identificar e,
se necessário, executar todas as medidas úteis para reforçar a base
industrial e tecnológica do sector da defesa, acrescentando que os
compromissos e a cooperação neste domínio respeitam os compromissos
assumidos no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).
Outro rumo para Portugal e para a Europa
Como reafirmamos na importante Conferência Nacional do PCP sobre
Questões Económicas e Sociais, e como demonstrámos no Encontro Nacional
dos 20 anos de adesão à União Europeia, é possível uma outra Europa
baseada no princípio de Estados soberanos e iguais em direitos, onde o
direito à produção seja uma questão central, apostada na paz, no
desenvolvimento e progresso social, na cooperação com os povos de todo o
mundo.
Para isso, impõe-se uma ruptura com as políticas previstas no Tratado
Europeu, incluindo as políticas neoliberais, o fim da União Económica e
Monetária e dos seus rígidos critérios, incluindo o Pacto de
Estabilidade e a Estratégia de Lisboa, e exige-se o aprofundamento da
democracia participativa, de que o referendo ao Tratado é uma questão
essencial, mas que também implica emprego com direitos e democracia nos
locais de trabalho, a defesa da produção nacional e dos micro, pequenos e
médios empresários, a valorização de quem trabalha e a garantia de
acesso universal a serviços públicos de qualidade.
Notas
(1) As primeiras ratificações decorreram nos parlamentos nacionais da Hungria, Malta, Eslovénia, Roménia e França.