Quando Portugal se prepara para acolher 4574 refugiados
sírios, fomos ouvir aqueles que aqui encontraram uma nova casa. Fugiram
do Holocausto, da ditadura brasileira, da guerra da Jugoslávia, dos
conflitos étnicos na Roménia e do conflito no leste da Ucrânia.
Aos
olhos da lei, nem todas estas pessoas são consideradas refugiadas. Mas
que outra palavra traduz melhor o estar em fuga? Cinco histórias de
gente que, tendo deixado tudo para trás, encontrou refúgio em Portugal.
(Um trabalho maravilhoso de Catarina Fernandes Martins com fotografia de Reinaldo Rodrigues/Global Imagens, para a Notícias Magazine)
O ROSTO DE RUTH ARONS congela‑se numa expressão de
espanto e incredulidade quando lhe dizemos que o debate sobre o
acolhimento de refugiados sírios em Portugal tem levantado ondas
xenófobas e suscitado alguma oposição, principalmente nas redes sociais.
Aos 93 anos, esta judia de origem alemã tem à sua frente vários jornais
diários que fazem manchete com os atentados de 13 de novembro em Paris,
mas talvez não esteja tão habituada a utilizar a internet.
Então,
perante a descrição daquilo que se vai escrevendo sobre os refugiados no
Facebook e no Twitter, diz apenas: «Não», ficando subentendido que o
relato a apanhou de surpresa, como se dissesse «não pode ser». «Tudo o
que é ódio e exclusão é altamente censurável», diz depois de abanar
lentamente a cabeça em sinal de reprovação.
Ruth sabe bem o que é ser alvo disso. Quando tinha 13 anos, viu a
legislação do país onde nascera voltar-se contra ela e a sua família. Em
1935, o Reichstag aprovava as Leis de Nuremberga e os judeus perdiam a
cidadania alemã, ficando altamente limitados na sua atuação
profissional, no acesso a espaços públicos e na esfera privada,
tendo-lhes sido imposta uma série de restrições no relacionamento com
não judeus.
O pai de Ruth, advogado, foi impedido de exercer a
profissão. Ruth e a irmã deixaram de ser aceites na casa de uma amiga
onde tinham lições particulares porque o pai desta era funcionário
público e temia represálias caso a família se relacionasse com meninas
judias. Ao contrário de tantas outras famílias que não souberam ler os
sinais, o pai de Ruth compreendeu que estava, de facto, na altura de
partir. «O meu pai tinha lido o Mein Kampf. Ele percebeu que
não podíamos ficar», diz Ruth. A família Arons decide então atravessar a
Europa num carro descapotável. «Vínhamos em passeio, fomos visitar
Paris», lembra Ruth, entretida com as memórias dessa viagem. «Quando os
meus pais disseram que não voltaríamos à Alemanha ficámos felizes a
dançar.»
Deixando para trás o ódio e a exclusão, Ruth encontrou um país do
qual «nada sabia», mas que foi amável na hora de a acolher e à sua
família, em 1936. Na verdade, são as memórias positivas desse tempo que
justificam o seu espanto ao saber que parte da sociedade portuguesa quer
agora excluir aqueles que fogem da guerra civil na Síria. Nunca a
trataram como diferente? «Nem pensar. Pelo contrário. Havia uma
incompreensão absoluta relativamente àquilo que estava a acontecer no
resto da Europa. Os portugueses diziam‑nos: “Mas como assim, vocês não
são iguais a nós?”.»
Durante a Segunda Guerra Mundial, Portugal foi ponto de passagem para
muitos europeus em fuga das perseguições políticas ou raciais dos
países ocupados pela Alemanha nazi. Muitos estavam em trânsito para o
continente americano. Muitos optaram por ficar. No ensaio Nós, os Refugiados,
publicado em 1943, a filósofa judia de origem alemã Hannah Arendt
escreve que o «sentido do termo “refugiado”» muda com a questão judaica.
É a perseguição aos judeus antes e durante o Holocausto – motivada por
questões raciais – que dá um novo significado ao conceito, anteriormente
utilizado para designar alguém que «procura refúgio devido a algum ato
cometido ou por tomar alguma opinião política».
A partir daí, defende
Arendt, refugiados passam a ser aqueles que tiveram a «infelicidade de
chegar a um novo país sem meios e que tiveram de ser ajudados por
comités de refugiados». E portanto, hoje, todos pensamos nesses judeus
em fuga como refugiados, ainda que de forma oficial e à luz da lei, Ruth
Arons e a sua família não estivessem abrigados pelo estatuto tal como
ele é hoje compreendido. Antes de mais, porque tal estatuto ainda não
existia. O primeiro instrumento internacional a definir os direitos dos
refugiados é a Convenção de Genebra de 1951. Portugal ratificou esse
documento, importante para definir aqueles que são ou não considerados
refugiados, em 1960.
A discussão em torno da utilização do conceito de «refugiado» por
oposição a «migrante» surgiu novamente neste verão perante o fluxo de
pessoas em trânsito para a Europa fugindo de conflitos em África e no
Médio Oriente. No final de agosto, o site da Al Jazeera
anunciava que não iria utilizar o termo «migrantes» para definir essas
pessoas em fuga, passando a referir‑se‑lhes como «refugiados». «Não há
uma crise de migrantes no Mediterrâneo. O que há é um grande número de
refugiados a tentar fugir de situações de miséria e de perigo
inimagináveis e um número menor de pessoas que tentam fugir do tipo de
pobreza que conduz alguns ao desespero», escrevia Barry Malone, editor
do site.
Entre os cinco entrevistados para esta reportagem, dois não tiveram
ou não têm ainda o estatuto de refugiado tal como a lei portuguesa o
define. Mas isso não impede que se refiram a eles próprios como tendo
sido ou como sendo refugiados nem impede que a comunidade que os acolhe
os veja como tal e use esse termo. Há uma vertente emocional na
utilização dessa palavra que vai além da atribuição do estatuto legal.
Ser refugiado significa estar em fuga da guerra ou de perseguições.
«Refugiado é todo aquele que foge de perseguição por motivo de raça,
religião ou por violação dos seus direitos fundamentais», explica Teresa
Tito de Morais, presidente do Conselho Português dos Refugiados.
PARA CHATEAR HITLER
Até 1945, a refugiada Ruth Arons esteve sempre pronta a fugir. «Sentia‑me em casa onde estava, mas se os nazis atravessassem os Pirenéus, tínhamos tudo preparado para ir para a Madeira e depois para o Brasil», diz. Uma vez que tinha aprendido francês na Alemanha, a língua portuguesa não representou um grande desafio. Mas tardou a fazer grandes amizades entre as portuguesas. A situação mudou depois do fim da guerra e da entrada na universidade. «Só me senti em posição de igualdade com os portugueses na Faculdade de Letras.» Foi aí que encontrou o futuro marido, Joaquim Barradas de Carvalho. E foi também aí que se tornou crítica da ditadura portuguesa. «Abriram‑me os olhos contra o Salazar e passei à luta antifascista. Era comunista», declara.
Celebrou o final da guerra da Europa sentindo-se já portuguesa.
Festejou o fim de Hitler e de Mussolini aguardando esperançosa que isso
significasse também o fim do fascismo em Portugal. Tornou‑se amiga de
Mário Soares, tendo sido sua testemunha no casamento com Maria Barroso. O
filho Alberto Arons de Carvalho foi um dos fundadores do Partido
Socialista em 1973. Tudo isto significa que Ruth Arons assistiu da
primeira fila a alguns dos momentos mais importantes do século xx
português. Agora, com 93 anos, responde sem hesitar: «Sinto‑me
completamente portuguesa. Só não consigo dizer os rr.» Mas é quando lhe
vemos o rosto iluminar‑se e abrir‑se num sorriso orgulhoso ao referir‑se
à Revolução dos Cravos que percebemos que Ruth é portuguesa até ao
osso. «O 25 de Abril foi uma coisa fantástica», diz, chutando a
felicidade pelo fim da guerra para segundo plano. «O meu filho abriu a
porta de casa no dia 24 e disse: “É hoje!” Não dormimos nessa noite, à
espera. Foi um entusiasmo tão grande…»
O facto de se sentir portuguesa não significa que tenha abdicado da
sua identidade judaica. Diz não ser religiosa, mas faz questão de ser
judia. «Assumo que sou judia para chatear o Hitler.» Ser judia, tal como
ser comunista durante o fascismo em Portugal, é uma questão de
resistência. E Ruth insiste em resistir.
O MELHOR AMIGO DE MELO ANTUNES
«O dia inicial inteiro e limpo» de Ruth não terá sido igualmente feliz
para Enoir Oliveira da Luz. A ditadura chegava ao fim em Portugal, mas
estava longe de terminar no Brasil, de onde Enoir teve de fugir em 1972.
Membro do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e dirigente sindical,
Enoir Oliveira da Luz, também conhecido por Juca, foi alvo de
perseguição política num país que vivia sob uma ditadura militar desde
1964, depois do golpe de Estado que afastou o governo de João Goulart.
«Comecei a estar sob muita pressão. Acordava de noite e tinha a polícia
dentro de casa ou via feixes de luz por debaixo das portas. Mataram o
meu cão, cortaram‑lhe as patas… Era um terrorismo psicológico. Nessa
altura houve várias prisões e os meus colegas acharam que estava na
altura de sair do país», diz.
Enoir Oliveira da Luz e a mulher exilaram‑se em Moscovo, deixando
para trás os filhos de 5 e 6 anos. «Foi difícil por causa da língua e
porque sabia que não podia voltar ao Brasil tão cedo. Fiquei muito tempo
sem ver os meus filhos».
No 25 de Abril de 1974, acompanhou as notícias
da Revolução portuguesa em Moscovo, junto de algumas figuras do Partido
Comunista Português. Em 1975, em pleno PREC, chega a Portugal para
fazer campanha de solidariedade para com os presos políticos no Brasil.
«Cheguei aqui antes do 25 de Novembro», diz, sorrindo nostalgicamente.
«Havia uma movimentação na rua, um interesse enorme em mudar a situação
do país.»
Num encontro com a CGTP foi colocada a possibilidade de poder
mudar‑se para Portugal. A 16 de fevereiro de 1976 aterrava em Lisboa.
«Em Portugal conseguia trabalho nos sindicatos e podia juntar a minha
família. Era mais fácil para os meus filhos adaptarem‑se aqui.» Durante
os primeiros anos em Portugal, esteve ilegal. Em 1977, a primeira
delegação do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR) abria portas por cá. Após as independências das ex‑colónias
portuguesas era necessário organizar a triagem de refugiados e
retornados que regressavam a Portugal. Entre 1977 e 1980, data da
primeira lei de asilo portuguesa, os refugiados que chegavam a Portugal
eram reconhecidos sob o mandato do ACNUR. Foi nesse período que Enoir
pediu o estatuto de refugiado.
E continuou ligado à luta contra a ditadura militar brasileira,
dinamizando a causa dos presos políticos a partir de Portugal. Em 1977
resolveu organizar uma «feijoada de solidariedade com o Brasil». «Foi um
sucesso. Atraímos mais de seiscentas pessoas. Continuei a trabalhar nos
sindicatos, mas achei que havia possibilidade de nos integrarmos de
outra forma, divulgando a nossa cultura», diz. Foi assim que surgiu o
Brasuca, o restaurante de comida brasileira que durante os anos 1980 e
1990 era sinónimo de Brasil em Lisboa, num Bairro Alto povoado por
jornalistas que se tornaram clientes assíduos e amigos de Enoir. Foi o
caso de Assis Pacheco e de Eugénio Alves. Com estas amizades, Enoir
integrava‑se na sociedade portuguesa, ocupando um lugar central junto da
intelectualidade lisboeta da altura. Ao mesmo tempo, a integração
facilitava o apoio às suas causas políticas. «Muitas das matérias que
saíam nos jornais de cá sobre o que estava acontecendo no Brasil tinham
cobertura aqui porque a gente intervinha. Sempre tive amigos que me
ajudaram», conta.
Habituado a movimentar‑se nos círculos políticos brasileiros – numa
fotografia no Facebook surge, em criança, junto ao presidente Getúlio
Vargas, é amigo próximo de Frei Chico, irmão do antigo presidente do
Brasil Lula da Silva e o seu advogado é o ex‑marido de Dilma Rousseff –,
não tardou a aproximar‑se de algumas das figuras mais emblemáticas da
política portuguesa no período que se seguiu à Revolução. «O Conselho da
Revolução reunia‑se aqui. O Melo Antunes era um dos meus melhores
amigos. Ficou para mim o que ouvi aqui nessa altura.»
Aproveitando a «lei da anistia» promulgada em agosto de 1979 pelo
presidente João Batista Figueiredo, e que concedia amnistia àqueles que
tivessem cometido «crimes políticos», Enoir regressa ao Brasil em 1985.
Ao aterrar é imediatamente detido. «Fiquei nove horas no departamento da
polícia política. A explicação que me deram foi que não tinha pago uma
multa de trânsito em Portugal, mas vi que tinham um grande dossiê do
Serviço Nacional de Informação com o meu nome», diz. Foi libertado e
pôde visitar a mãe, que não via há treze anos. Depois disso regressou
mais três vezes.
«Sempre que vou ao Brasil os jornalistas e a televisão vão atrás de
mim. Sou um histórico.» Fala com orgulho do reconhecimento tardio. E com
saudade. Apesar de estar totalmente integrado em Portugal, de viver na
mesma casa há quase quarenta anos e de se sentir estimado, nunca
conseguiu deixar de pensar que queria viver novamente no Brasil. «Sempre
quis voltar. Tenho muita saudade da minha terra. Mas tenho aqui filhos e
netos e estas coisas vão-se enraizando. Fica mais difícil.» E pensando
nos refugiados sírios que estão para chegar, Enoir reconhece que nem
tudo é um «mar de rosas». «Não é fácil não. Quando chegámos não tínhamos
familiares nem amigos. É muito difícil ter saudade, querer ir para os
amigos, para os avós e não poder…»
O PAÍS DE SABINA JÁ NÃO EXISTE
Sabina Karamehmedovi não quer voltar ao país que deixou para trás em 1992 quando chegou a Portugal como refugiada, fugida da Guerra dos Balcãs. Essa ideia não a atormenta. Não há nenhum plano de longo prazo para regressar. É que o seu país desapareceu. «Já não existe o país de onde saí. A cidade já não é a mesma, as pessoas que eu conhecia não estão lá», diz, insistindo ter nascido jugoslava e não bósnia. «Não sei o que é a Bósnia. Nunca vivi nesse ambiente. Vou lá como turista, mas não sinto que pertença ali», diz, sem qualquer sotaque, num português irrepreensível, completamente à vontade numa esplanada da Praça da República, em Coimbra.
No dia seguinte a caírem as primeiras bombas perto de Derventa, no
Norte da Bósnia, a família de Sabina Karamehmedovi fugiu para a casa do
avô a quatrocentos quilómetros dali, em Split, na Croácia. Com 12 anos,
Sabina não compreendia por que razão, de um momento para o outro, o seu
país acordava em guerra, dividido entre antigos amigos que agora
deixavam de se falar. O pai de Sabina era muçulmano e a mãe sérvia, mas
como ambos eram ateus, a questão religiosa nunca tinha sido um assunto
em casa. Só na Croácia começou a aperceber‑se das diferenças. «Quiseram
pôr-me numa escola à parte. Para os meus pais não fazia sentido sermos
refugiados no nosso próprio país. Foi por isso que decidiram que
tínhamos de sair.»
Ao abrigo da missão Crescer em Esperança, que acolheu cerca de cem
refugiados desse conflito, Sabina, a irmã Dragana e a mãe Vesna chegaram
a Portugal em setembro. O pai chegaria uns meses depois. Sabina diz que
esqueceu quase tudo dessa viagem, mas não consegue esquecer o «barulho
horrível do avião militar» que as trouxe até ao aeroporto de Figo
Maduro.
Os primeiros tempos não foram fáceis. «Não fiquei feliz por termos
saído. Viemos sem o meu pai e não tínhamos aqui ninguém, não tínhamos
casa. Estranhei a língua, a comida e o clima. Era tudo diferente ».
A
integração foi facilitada devido a um casal de Soure que, depois de ter
lido uma entrevista à mãe de Sabina, os convidou para viver em sua casa.
Os pais aceitaram. Olhando para trás, Sabina pensa como deve ter sido
difícil para eles aceitar a ajuda de dois adultos. «Eles pagavam a
comida, a roupa, as despesas, o material escolar.» Mas não foi só este
casal que ajudou a família jugoslava. «Toda a comunidade se mobilizou.
Os professores davam‑nos horas extra de português; encontraram emprego
ao meu pai num armazém e conseguiram que a minha mãe trabalhasse como
arquiteta», lembra Sabina, que é neste momento voluntária na Plataforma
de Apoio aos Refugiados (PAR), impulsionada por Rui Marques, que já
tinha estado por detrás da campanha que trouxe famílias dos Balcãs para
Portugal e que agora organiza um novo esforço de acolhimento dos
refugiados sírios.
Esta jovem de 35 anos que estudou Arquitetura em
Coimbra e casou com um português tem falado em escolas e para outros
grupos, apontando a sua integração como um exemplo de sucesso e
procurando esclarecer dúvidas. «Percebo o receio, mas acho que é pura
ignorância a falar. Toda a gente tem medo do desconhecido. Mas não
acredito que o povo português consiga dizer que não e não se mobilize»,
diz, insistindo: «Não acredito. Não com tudo o que fizeram por mim e
pelos meus pais.»
A firma de arquitetura onde Sabina trabalhava foi tendo cada vez
menos trabalho e no verão a jovem ficou desempregada. Até ao fim do ano
vai procurar trabalho em Portugal. Se nada aparecer, terá de deixar o
país. «Adoro Coimbra. Comprámos uma casa para recuperar. Tínhamos tantos
planos… Não me consigo imaginar a viver noutro sítio», diz, com
tristeza, lamentando que tantos jovens portugueses estejam na mesma
situação. Apesar de este ser um assunto que a incomoda, Sabina fala com
alguma tranquilidade. «Não é como a guerra em que não se tem
alternativa. Trata‑se de procurar uma vida melhor. Na altura tivemos de
sair porque não tínhamos hipótese. As pessoas não conseguem compreender o
que é fugir de uma guerra.»
UM DESAFIO PERMANENTE
O romeno Pavel Salca chegou a pensar viver na antiga Jugoslávia, depois da queda do ditador Ceausescu. «Quando ele morreu pensámos que a Roménia ia ficar melhor, mas nada mudou.» A economia já frágil entrou em colapso e não era fácil encontrar emprego. Na altura, muitos romenos procuraram melhores condições de vida fora do país. Pavel, de etnia húngara, tinha a vida mais complicada devido às tensões entre a minoria húngara na Roménia e a restante população. «Quando entrava num mercado e ouviam o meu sotaque, não me atendiam. Sempre tive dificuldades. Mesmo quando andava na escola – ia jogar à bola e mandavam‑me embora. Sentia‑me sempre muito triste», diz.
Pavel começou a procurar trabalho fora da Roménia. Na mesma altura em
que Sabina deixava a sua casa, o romeno atravessava a antiga Jugoslávia
de comboio e testemunhava um dos períodos mais negros da história
europeia recente. «Via as pessoas a serem baleadas e a morrer.» Tentou
trabalhar em França, mas não conseguiu. Até que conheceu emigrantes
portugueses. «Conhecimentos e negócios…», diz, para explicar a escolha
de Portugal.
Chegou em 1994 com 29 anos e pediu estatuto de refugiado. Teresa Tito
de Morais explica que apesar de a maioria dos romenos em Portugal serem
imigrantes, no início dos anos 1990 foi concedido o estatuto de
refugiado a alguns cidadãos romenos dada a instabilidade que se vivia no
país.
À chegada a Portugal, Pavel chegou a viver debaixo da Ponte 25 de
Abril. Tentou ir para o Canadá num contentor, mas foi apanhado. Durante
estes tempos difíceis, tal como outros romenos, pôde contar com a ajuda
do padre Alexandre Bonito, representante da Igreja Ortodoxa em Portugal,
diz o romeno. «Ele dizia‑nos para termos cuidado e arranjava‑nos
comida.»
Ainda nos anos 1990, o Ministério da Administração Interna cedeu à
comunidade romena um antigo posto da PSP no Poço do Bispo, em Lisboa. É
aí que Pavel vive. As pequenas divisões da antiga esquadra foram
transformadas em pequenos apartamentos. No total vivem ali dez famílias –
cerca de 25 ou 26 romenos, incluindo seis crianças. Os apartamentos são
exíguos – essencialmente quartos divididos em sala, quarto e cozinha
improvisada. A casa de banho é partilhada por todos. Pavel vive sozinho
num «quarto pequenino», e acaba por passar grande parte do tempo com a
família de Vasile Bindea, um outro romeno de 35 anos que veio há cinco
anos com a mulher para Portugal. O casal teve uma filha, Maria, que tem
agora 2 anos. Pavel trata a criança com afeto,
pegando‑lhe constantemente ao colo e brincando com ela. «Agora não fala.
Quando começar nunca mais se cala», diz, enquanto embala a menina.
As famílias romenas receberam ordem de despejo da Câmara Municipal em
janeiro de 2012 e deram entrada em tribunal a uma providência cautelar
para contestar a decisão. Pavel acabou por encontrar trabalho numa
empresa ligada às telecomunicações. Trabalha no mesmo local há quase 20
anos, dedicando‑se a instalar cabos de fibra ótica, antenas e outras
novas tecnologias. Diz que está sempre em viagem. «Saio segunda e venho
sexta. Ando sempre com a malinha dentro do carro. Nunca sei para onde
vou», diz.
Aos 50 anos, diz que se sente muito bem em Portugal e nem se queixa
da ordem de despejo. Conta que já teve oportunidade de ir trabalhar
noutro país por mais dinheiro, mas recusou. «Não é só o dinheiro que
importa. É um certo respeito que se conquista. Aqui no trabalho já sou
respeitado. Se fosse para outro país ia começar do zero.»
Enquanto esperam pelo jantar que a mulher de Vasile cozinha, os dois
romenos veem televisão. Um dia depois dos ataques em Paris, Pavel reage
às notícias com a consciência de que a situação dos refugiados sírios
vai piorar na Europa. Mas não consegue evitar fazer um comentário que
denota algum desconforto com a chegada destas pessoas. «Não me arranjam
um lugar lá em Penela como refugiado? Casa, comida, sem trabalhar… Eu
tenho de trabalhar para me sustentar e mal.»
Teresa Tito de Morais diz compreender o comentário e interpreta‑o,
tentando pôr-se no lugar daqueles que pensam desta forma: «Se nós não
estamos bem porque é que vêm mais para ficarmos ainda pior?» A resposta
da presidente do CPR é esta: «A questão dos refugiados é um desafio
permanente – nunca está ganho. Consideramos que a vinda deste grupo
maior, e tendo em conta a onda de solidariedade que se levantou no nosso
país, poderá criar melhores condições para integrar aqueles que já cá
estão há mais tempo e não estão tão bem como desejaríamos.»
A MULHER E O DICIONÁRIO DE RUSSO‑PORTUGUÊS
Neste momento, o Centro Português dos Refugiados está a apoiar cerca de trezentos adultos e 22 crianças. No total há mais de trinta nacionalidades – paquistaneses, marroquinos, chineses, eritreus, somalis, entre outros. Cerca de metade dos requerentes de asilo ajudados pelo CPR vêm da Ucrânia, onde em 2014 se iniciou um conflito civil.
Uma dessas ucranianas é Olga Itacuru, 48 anos. Olga chegou a Lisboa a
17 de fevereiro de 2014, fugida de Slaviansk. Quando rebentou o
conflito entre populações pró-russas e pró‑ucranianas, Olga ficou
encurralada. Como trabalhou na Rússia durante cinco anos, é portadora de
passaporte russo, do qual não quis abdicar independentemente de a
Ucrânia não reconhecer a dupla nacionalidade. Na altura considerou que o
passaporte russo dava mais garantias uma vez que os salários pagos na
Rússia são mais elevados.
Mas num contexto de guerra civil na região
onde nascera, esta decisão revelou‑se inconveniente. Olga tentou
trabalhar como enfermeira num hospital de Donetsk, mas foi acusada de
colocar veneno no soro que era usado para tratar os soldados ucranianos.
Olga diz que não a deixaram trabalhar, que a tratavam como inimiga. Era
a «bruxa russa». Conta que chegaram a atirar‑lhe ácido à cara e mostra
como levou as mãos em proteção do rosto. Depois aponta para as zonas
ressequidas no pescoço, que diz serem queimaduras.
Decidiu tentar
procurar novamente trabalho na Rússia, mas diz que também aí se sentia
estranha, apesar de defender a atuação do presidente russo no conflito.
«Os russos só queriam defender Donetsk. Não é verdade que Putin tenha
atacado a Ucrânia», diz, exaltando‑se e levantando o tom de voz.
Por isso, decidiu fugir. Chegou à Eslováquia num camião frigorífico,
transportada de forma ilegal. Aí, uma mulher ucraniana aconselhou‑a a
tentar encontrar refúgio em Portugal. «Disseram‑me que havia uma grande
comunidade ucraniana aqui e que as pessoas eram muito humanas.» Chegou a
Lisboa de comboio e dirigiu‑se à Bobadela. Fez o pedido de asilo e
frequentou um curso de português. A comunidade ucraniana, diz,
voltou‑lhe as costas por ter passaporte russo. Como o pedido de asilo
está ainda pendente, a Segurança Social encarregou‑se do seu caso e
recolocou‑a no distrito de Castelo Branco, onde Olga está há dez meses.
Pouco tempo depois foi novamente transferida para Alcains.
Recebe mensalmente 250 euros e com esse apoio tem de pagar uma renda
de 140 euros para alugar um quarto. Não recebeu a prestação em outubro e
teve de recorrer à Cáritas para a ajudarem a pagar o quarto. Diz que se
sente muito sozinha numa vila onde muitas casas estão à venda e onde
ninguém fala russo. Diz bom dia e boa tarde a quem passa, mas não
consegue prolongar as conversas. Passa os dias a arrumar a casa, a
passear e a fazer desporto, a colher fruta e a fazer marmelada. Quando
tem de se deslocar a Castelo Branco, fá-lo a pé, levando mais de duas
horas a percorrer a distância. Mas aquilo que verdadeiramente a perturba
é não conseguir continuar a estudar português.
«Estou aqui há dez meses e a vida acabou para mim. Quero estudar
língua portuguesa para poder trabalhar, mas aqui não há escola.»
Leva‑nos ao quarto onde dorme para nos mostrar o pequeno dicionário de
russo‑português e as gramáticas elementares com as quais se esforça por
aprender português sozinha. Uma das responsáveis da Cáritas de Alcains
que a acompanha disse‑nos que Olga teve uma oferta de emprego como
auxiliar de dentista, mas foi rejeitada por não falar a língua.
Apesar de ser tratada por refugiada na comunidade que a acolheu, Olga
não tem ainda o estatuto oficial. Se este não lhe for atribuído, Olga
não pode ser devolvida ao país natal, de acordo com a lei de asilo
portuguesa. Tendo deixado tudo para trás, Olga não tem para onde
regressar. «Eu era inimiga na minha terra natal, mas também era uma
pessoa estranha na Rússia», diz. «Não quero voltar para a Ucrânia. Quero
tentar trabalhar em Portugal.»
Olga está sozinha, não fala com ninguém, não tem dinheiro para
contactar a família, mal o tem para viver. E, no entanto, é com
veemência que diz querer ficar. Esforça-se, ao dizê‑lo, por utilizar uma
ou outra palavra em português, como se quisesse mostrar que merece, que
está a lutar por isso. Mantém a casa limpa e arranjada, todos os dias
se senta a desenhar as curvas do alfabeto latino, vai devolver todo o
dinheiro que lhe foi emprestado. Que levará alguém a querer ficar,
completamente sozinha, num país desconhecido e em crise? A resposta vem
das palavras de Sabina Karamehmedovi: «As pessoas não conseguem
compreender o que é fugir de uma guerra.»